segunda-feira, 11 de abril de 2016

TRECHO DE CASA GRANDE E SENZALA, A BÍBLIA DO RACISMO BRASILEIRO, DOS HIPÓCRITAS DEFENSORES DA DEMOCRACIA RACIAL E RAÇA HUMANA.

Escravo negro, sexo e família.

Fragmento de Casa grande & senzala

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo — há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil — a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo, em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.

Já houve quem insinuasse a possibilidade de se desenvolver das relações íntimas da criança branca com a ama-de-leite negra muito do pendor sexual que se nota pelas mulheres de cor no filho-família dos países escravocratas. A importância psíquica do ato de mamar, dos seus efeitos sobre a criança, é na verdade considerada enorme pelos psicólogos modernos; e talvez tenha alguma razão Calhoun para supor esses efeitos de grande significação no caso de brancos criados por amas negras. (…)

É verdade que as condições sociais do desenvolvimento do menino nos antigos engenhos de açúcar do Brasil, como nas plantações ante-bellum da Virgínia e das Carolinas — do menino sempre rodeado de negra ou mulata fácil — talvez expliquem, por si sós, aquela predileção. Conhecem-se casos no Brasil não só de predileção mas de exclusivismo — homens brancos que só gozam com negra. De rapaz de importante família rural de Pernambuco conta a tradição que foi impossível aos pais promoverem-lhe o casamento com primas ou outras moças brancas de famílias igualmente ilustres. Só queria saber de mulecas. Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem de conhecida família escravocrata do Sul: este para excitar-se diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de casado, de levar para a alcova a camisa úmida de suor, impregnada de budum, da escrava negra sua amante. Casos de exclusivismo ou fixação. Mórbidos, portanto; mas através dos quais se sente a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do brasileiro.

Não nos interessa, senão indiretamente, neste ensaio, a importância do negro na vida estética, muito menos no puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muito maior, ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do português.

Fonte: Freyre, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, págs. 283-284.

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