segunda-feira, 12 de maio de 2014

“Mães Negras”, por Ademir Barros dos Santos

Vírginia Yunes - Guiné Bissau

Sorocaba – Parece incrível, mas a tradição africana, especialmente nas sociedades patriarcais, cria um tipo de mulher que dificilmente se encontra fora de lá: a mãe social; naquelas sociedades, quando se pergunta à mulher quantos filhos ela tem, a resposta é quase imediata:

"Dei tantos filhos a meu marido" responde ela!

Estranho, mas é verdade: afinal, a sociedade pode ser patriarcal; mas a mãe, é mãe social.

Em outras palavras: por lá, todas as mães são mães de todos os filhos, o que é facilitado pela compreensão de que a autoridade é diretamente proporcional à idade; como decorrência, além da esposa mais antiga escolher e comandar todas as outras, enquanto existir uma única mãe, não existirá a orfandade!

Entretanto, por que falar, aqui, de mães africanas? Simplesmente porque, embora não se tenha, no Brasil, o mesmo sistema social, as mães negras brasileiras ainda mantêm, consigo, o mesmo carinho e cuidado por todos os filhos. Seus ou alheios.

Quem nunca ouviu aquela música em que se pergunta: "Olorum, quem mandou essa filha de Oxum, tomar conta da gente e de tudo o que há"?

Pois é: se é certo que todos sabem que esta letra, linda, homenageia Mãe Menininha, saudosa cuidadora do candomblé do Gantois, também é preciso entender que esta Mãe – com maiúscula – e todas as demais Mães do candomblé, não são, apenas, "mães-de-santo"! Isto porque, além de cuidadoras de seus orixás, são elas, principalmente, cuidadoras de variados "filhos" de seus diversos orixás – exatamente como o costume africano impõe e determina.
FOTO: João Branco, Angola

Mas, não é só nos candomblés, onde veneráveis senhoras, até por dever de ofício, acolhem desvalidos, que tais mães acolhedoras podem ser encontradas facilmente: basta dar uma volta por qualquer periferia socialmente fragilizada, e lá estão, os negros carentes, lambendo o leite social que escorre do colo de suas mães de adoção; então, cuidados que são por mães alheias, adotam eles suas novas mães, que se tornam suas, mais por devoção que por dever ou vocação!

Há mais: pelas periferias encontram-se, ainda e em profusão, mães de mães, que se tornam mães de colunas de netos, quer porque as filhas não têm com quem deixar os pimpolhos, quer porque há genros tirando férias em alguma colônia penal; quer porque as filhas não podem sustentar, sozinhas, as próprias proles, quer porque certas proles, desvanecidas em famílias decompostas, preferem, a qualquer outro colo, carinho ou regaço, o colo, carinho e regaço de envelhecidas senhoras, mesmo que um tanto alheias a suas mães naturais.
Foto: Mamaye-Malawi

Mães cuidadoras, nossas negras mães! Mais que mães, veneráveis mulheres, que ultrapassam, de muito, a imagem, petrificada em estátuas, que sempre as representam como escravas que amamentam os filhos de seus senhores não africanos, até torná-los tão senhores e tão cruéis com seus neoafricanos, quanto foram seus pais...

Mães cuidadoras, nossas mães negras! Que adotam como seu, mesmo quando ao largo da lei, qualquer filho desvalido que atravesse suas portas maternais...

Adoráveis senhoras Oxuns, nossas mães negras, que nunca nos negam o amor e a água de que carecem nossa sede e nossa alma.



Velhas Iemanjás, nossas cuidadoras mães negras; que insistem de fazer de nós, meros mortais, seus onipotentes e onipresentes orixás...







FONTE:http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-genero/24539-maes-negras-por-ademir-barros-dos-santos

Cem anos de segregação

Há um século nascia Carolina Maria de Jesus, pioneira da literatura marginal. Há um século São Paulo transforma periferia em nova senzala
Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé.

Por Felipe Neves
O ano era 1958. O jovem jornalista Audálio Dantas, nos seus primeiros anos de reportagem, enfiava os sapatos na lama para tentar entender como pessoas poderiam se aglomerar em um terreno, sob barracos de madeira, sem as mínimas condições de saneamento. Era a primeira vez que ele pisava na favela do Canindé, na Zona Norte da cidade, às margens do rio Tietê.
Entre crianças com os pés diretamente no chão, velhos com a saúde degenerada e mulheres lavando roupas em tanques improvisados, uma certa negra chamou a atenção do repórter. Tratava-se de Carolina Maria de Jesus, a favelada que viria a se tornar a escritora pioneira da literatura dita “marginal” no Brasil.
Sua principal obra, que chegou às editoras graças à intervenção de Audálio, era um compilado de reflexões sobre o cotidiano ingrato em que ela tentava sobreviver, catando lixo para sustentar, sozinha, seus três filhos. Para Carolina, a favela se traduzia como o símbolo do descaso com o que não se quer ver. Uma espécie de tapete para onde é empurrada a maior parte dos problemas da cidade. Um verdadeiro Quarto de Despejo.
Meio século depois, qualquer olhada nos mapas de análise urbanística e social de São Paulo revela que a visão da escritora à época ainda não mudou completamente. “O padrão centro-periferia ainda persiste”, argumenta o urbanista Kazuo Nakano. Durante uma de suas apresentações, ele demonstra que a cidade possui uma espécie de anel no entorno de seu centro, comportando a maioria das favelas da capital. Assentamentos irregulares e áreas de risco ajudam a espessar o círculo. As exceções são os cortiços, majoritariamente localizados no centro, mas que, pela pouca estrutura que possuem, acabam por se tornar uma espécie de “periferia centralizada”.
Obviamente, se observadas in loco, essas realidades parecem distantes da relatada por Carolina. Mas mesmo com mudanças significativas na qualidade de vida da população que vive longe do centro – os níveis de acesso precário a água, esgoto e tratamento de lixo são extremamente baixos na periferia, quase não chegando a 1% – o que se constata é que a favela ainda precisa encontrar alternativas geradas dentro de si mesma para resolver seus problemas.
As comunidades ainda se perpetuam como forma de organização urbanística próprias da periferia. De 2000 a 2007, o crescimento populacional nessas regiões alcançou incríveis 660% acima da média da capital.
Mais do que ampliar o número de barracos de madeira, no entanto, para inflar tanto as favelas precisaram adotar um modos operandi recorrente dos bairros nobres. Uma frase da música Grajauex, do rapper Criolo, ilustra bem o que aconteceu ali. “The Grajauex, Duas laje é triplex”, diz ele para ilustrar a verticalização da periferia, processo que tratou de elevar os níveis de adensamento da periferia a níveis nunca antes alcançados. As favelas têm 65 mil habitantes por km² na cidade – no distrito da Bela Vista, com a maior densidade da capital, há 23 mil pessoas distribuídas no mesmo perímetro.
A diferença, no entanto, é que o aumento da densidade demográfica nas regiões de classe média da cidade é estimulado com implantação de infraestrutura de transportes, saúde educação. Nas periferias, o que ocorre é o inverso. Primeiro, chegam os moradores. Dias ou décadas depois, os serviços.
“Crescer para cima” foi a maneira que comunidades encontraram para existir comportando seu crescimento exponencial. Mas também é uma resposta à pouca ação do poder público para resolver seus problemas. Hoje, existem cerca de 440 mil domicílios nas favelas da capital. Deste número, somente 10% sofreram processo de urbanização. Outros 17% estão passando por modificações. Nos 70% restantes, nenhuma intervenção tem sido feita. Mais do que isso, cerca de 80% dessas áreas ainda não receberam título de concessão, o que significa dizer que estão irregulares.
“O loteamento periférico clandestino foi uma das principais formas de alocação de moradia nas periferias ao longo do século passado”, relembra Kazuo. Apesar de terem surgido pelo processo de crescimento desenfreado da cidade, problemas como esse também continuam a existir.
Um exemplo está na Vila Nova Palestina, na Zona Sul, comunidade com cerca de 8 mil famílias que vivem em um terreno de 1 milhão de m², sem quaisquer condições de saneamento. A área havia sido destinada à construção de um parque pela Prefeitura. Sob pressão dos movimentos de moradia, o prefeito Fernando Haddad prometeu conceder a área à população assim que Plano Diretor da cidade for aprovado na Câmara.
Em 2014, Carolina Maria de Jesus completaria 100 anos. Numa entrevista, sua filha, Vera Eunice, uma das protagonistas do diário, revela o desconforto ao ver que a realidade em que viveu com a escritora ainda persiste. “Eu achava que as abordagens do livro se tornariam obsoletas. O problema é que quase tudo que minha mãe viu e escreveu ainda está aí, na nossa frente.”
Felipe Neves é estudante de jornalismo da PUC. Tem 20 anos e mora em São Paulo

FONTE:http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/cem-anos-de-segregacao-8916.html


Inspiradas em Lupita, jovens negras falam de preconceito e da valorização da própria beleza.

Da esquerda para a direita: a atriz Erika Januza, a psicóloga Vanessa Andrade, a estudante de Artes Fernanda Ribeiro e a consultora e escritora Nina Silva

Mulheres negram abandonaram os produtos químicos para os fios e assumem seus traços

RIO - A eleição da atriz negra Lupita Nyong’o, 31 anos, como a mulher mais bonita do mundo pela revista “People”, no fim do mês passado, não tem o poder de acabar com o preconceito nem em Hollywood nem no resto do mundo. Não muda o fato de que, no Brasil, há o dobro de negras e pardas no serviço doméstico em comparação às mulheres brancas, de acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE de 2013. Tampouco transforma a diferença no rendimento mensal das mulheres negras — que corresponde a 56% da renda das brancas, e não chega à metade daquela dos homens brancos, segundo o “Dossiê mulheres negras”, elaborado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).


Mas a escolha de Lupita, vencedora do Oscar 2014 de atriz coadjuvante pelo filme “12 anos de escravidão”, de Steve McQueen, causou, em mulheres do mundo todo, orgulho de ver no pódio da beleza uma negra de cabelo natural, pele reluzente, boca e nariz grossos. Também em brasileiras como Nina Silva, Vanessa Andrade, Fernanda Ribeiro e Erika Januza, reunidas pela Revista O GLOBO na Casa Soul, em Santa Teresa.

Negras, jovens e bonitas, elas conhecem o preconceito, mas abandonaram os produtos químicos para os fios e assumiram seus traços — como a própria atriz de origem queniana, que disse estar feliz porque outras meninas como ela se sentiriam “mais vistas”. Em discurso no prêmio Mulheres Negras em Hollywood, em fevereiro deste ano, Lupita contou como foi importante se espelhar em outras mulheres para se sentir bonita, como a modelo anglo-sudanesa Alek Wek.

— É muito bom ver na capa uma mulher negra altamente pigmentada e fora do padrão de boca fina e cabelo na cintura. Ela tem o fenótipo de uma certa região da África que nunca foi valorizado como bonito — diz Nina Silva, consultora de tecnologia da informação, escritora e produtora, 31 anos e pele tão negra como a da atriz.

Vanessa Andrade concorda. Aos 28 anos, cabelo “quanto mais alto melhor”, a psicóloga que cresceu no Morro do Cantagalo diz que “demorou para entender que o preconceito que sentia era racismo’’ — já que sua pele não é tão escura.

— Sou negra, mas minha estética ainda é aceita. Eu abomino este termo, mas no Brasil estou mais próxima ao que se chama de mulata. Por isso a Lupita é importante. Mas, para além dela, quero que as crianças cresçam com algo tangível, que elas possam admirar alguém no próprio meio — afirma Vanessa, que é mestre em Psicologia e trabalha em projetos sociais no Cantagalo e em Vigário Geral.

Mesmo com a pele mais escura, a estudante de Artes Visuais da Uerj Fernanda Ribeiro, de 26 anos, também demorou a se dar conta do preconceito, e só passou a refletir sobre o tema ao entrar num curso pré-vestibular na Mangueira.

— Comecei a perceber que não era coincidência o que eu passava ainda pequena, quando era chamada de negra do cabelo duro — conta ela, que cortou os fios longos e alisados numa performance no ano passado.

No ar na novela “Em família”, na TV Globo, Erika Januza também só assumiu os cabelos naturais há menos de dois anos. A atriz diz que se sentiu representada por Lupita.

— Isso deveria ser normal, porque ela é bonita independentemente da cor. Mas, como não é normal, fiquei superfeliz — diz a atriz, a única das quatro a apoiar a campanha #somostodosmacacos. — O que aconteceu com o Daniel Alves (jogador de futebol que comeu uma banana arremessada contra ele em campo, em resposta irônica ao ato praticado por um torcedor espanhol) foi absurdo, e esse movimento chama a atenção de que somos todos iguais.

Vanessa se opõe:
— Vejo todos os dias crianças sofrendo por serem chamadas de macaco. É uma violência simbólica muito grande. É muito fácil capitalizar o sofrimento do povo negro. Tenho amigos que acreditam que esse é um movimento estratégico, mas eu acho ingenuidade. Vivemos uma condição de profundo racismo, não podemos perder o foco.


Leia mais sobre esse assunto em http://ela.oglobo.globo.com/beleza/cultura-em-beleza/inspiradas-em-lupita-jovens-negras-falam-de-preconceito-da-valorizacao-da-propria-beleza-12453031#ixzz31VKLYOIu