quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A história mal contada do assassinato de Patrick, 11 anos

O caso de Patrick, criança de 11 anos assassinada em uma favela no Rio de Janeiro, já foi esquecido pela grande mídia. A PM alegou ter encontrado com o menino uma pistola, drogas e um rádio transmissor. Será mesmo?


Criança de 11 anos morre em uma favela do Rio de Janeiro. Estarrecido por ver que o caso está sendo esquecido pela grande mídia, quero aqui descrever, com muito desconforto, o que está sendo o extermínio do povo da favela.
Quando há um caso como o do menino Patrick, vemos o futuro da favela ser exterminado junto com ele. A criança de apenas 11 anos, morreu a tiros na manhã de quinta-feira (15), na comunidade Camarista Méier, Zona Norte do Rio. A incursão da polícia na favela tirou a vida de um menino e alegou ter com ele uma pistola, uma mochila com drogas e um rádio transmissor.
Ainda para elucidar o caso, segundo o jornal O Dia, o pai da criança afirma que não havia qualquer pistola perto do corpo logo depois que o menino foi baleado. O caso foi registrado na 25ª DP (Engenho Novo), que descreveu o caso como morte decorrente de intervenção, ou seja, mais um auto de resistência.
O que me deixa estarrecido, como falava no inicio do texto, é a naturalização da violência. Uma CRIANÇA de 11 anos foi morta a tiros e a população não se incomoda com isso. Ao saber do ocorrido fiquei com uma dor horrível, me frustrei e me perguntei se a sociedade sentiu a dor que eu estava sentindo. Pelo jeito não.
Pouco importa para a sociedade se mais um negro foi morto na favela. Foi só mais um dos milhões que a política de segurança quer exterminar. Acho que na verdade foi menos um. Menos um que não vai para o asfalto para roubar o playboy. Menos um que não ira ser o assaltante que roubou o empresário, que sequestrará o seu filho. Foi só menos um que não vai tirar a vaga do seu filho branco na universidade.
Quando uma criança negra da favela morre desta forma, vemos nitidamente as faces do racismo institucional. Historicamente a criminalização da pobreza esconde as tragédias que são cotidianas dos moradores das comunidades periféricas. Se Patrick estava ou não envolvido com o caso não cabe a mim julgar, mas caracterizar o ocorrido como pena de morte para um menino de 11 anos é, no mínimo, um problema de saúde mental e um grande complexo de divindade.
Perdemos mais uma criança para a violência, mais uma que pode vir a ser julgada de ‘menos uma’. Me pergunto: Patrick se continuasse vivo seria um perigo para a sociedade? O futuro de uma criança negra da favela é mesmo julgado pelos registros de violência na comunidade? Sinceramente, gostaria de falar que na favela os sonhos são cortados na sua raiz e poucos são os sobreviventes desta guerra. Patrick foi a vítima da vez. Quem será o próximo?
FONTE:http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/01/historia-mal-contada-assassinato-de-patrick-11-anos.html

Marginalzinho: a socialização de uma elite vazia e covarde


Parada em um sinal de trânsito, uma cena capturou minha atenção e me fez pensar como, ao longo da vida, a segregação da sociedade brasileira nos bestializa
por Rosana Pinheiro-Machado Do Carta Capital
Era a largada de duas escolas que estavam situadas uma do lado da outra, separadas por um muro altíssimo de uma delas. Da escola pública saíam crianças correndo, brincando e falando alto. A maioria estava desacompanhada e dirigia-se ao ponto de ônibus da grande avenida, que terminaria nas periferias. Era uma massa escura, especialmente quando contrastada com a massa mais clara que saia da escola particular do lado: crianças brancas, de mãos dadas com os pais, babás ou seguranças, caminhando duramente em direção à fila de caminhonetes. Lado a lado, os dois grupos não se misturavam. Cada um sabia exatamente seu lugar. Desde muito pequenas, aquelas crianças tinham literalmente incorporado a segregação à brasileira, que se caracteriza pela mistura única entre o sistema de apartheid racial e o de castas de classes. Os corpos domesticados revelavam o triste processo de socialização ao desprezo, que tende a só piorar na vida adulta.
Mas eis que, de repente, um menino negro, magro e sorridente, ousou subverter as regras tácitas. Brincando de correr em ziguezague, ele “invadiu” a área branca e se esbarrou num menino que, imediatamente, se agarrou desesperadamente no braço da mulher que lhe buscara. Foi um reflexo automático do medo. O menino “invasor” fez um gesto de desculpas – algo como “foi mal” -, e voltou a correr entre os seus, enquanto que a outra criança seguia petrificada.
No olhar do menino “invadido”, havia um misto de medo, de raiva, mas principalmente, de nojo – como que se a outra criança tivesse uma doença altamente contagiosa. Não é difícil imaginar o impacto de esse olhar no inconsciente do menino negro e pobre. Este aprendia, desde muito cedo, que era um intocável, que vivia em uma sociedade na qual seu corpo, na esfera pública, valia menos que o de um menino da mesma idade, que ainda não tinha nenhum mérito conquistado, apenas privilégios herdados.  As consequências desse gesto minúsculo serão trágicas para o menino “invadido”, pois é vítima da ignorância social. Mas será muito mais trágica para quem é negro e desprovido de capital econômico, social e cultural. Para que essa que criança não se corrompa no futuro, ela precisa ser salva do olhar de nojo.
É possível que, por meio de leitura e mistura, o menino amedrontado se engrandeça politicamente no futuro, se liberte do muro que lhe protege e dispense o braço da babá. Mas, infelizmente, há uma tendência grande de que ele, cercado por medo e preconceito, passe o resto de sua existência se protegendo do “marginalzinho”. Pivetes, favelados, fedorentos: isso é tudo que o ele ouve sobre seus vizinhos. Trata-se de uma verdade histórica a priori, para além da qual não se consegue pensar. Essas categorias compõem o discurso forjado sobre a pobreza, que, em última instância, visa à intervenção e à manutenção do poder. Reproduzindo este discurso, então, o menino tornar-se-á um adulto. Ele blindará seu carro, colocará alarme em sua casa, pedirá a morte de traficantes. Dirá que rolezinho é arrastão, pedirá mais polícia e curtirá a vida em camarotes. Pode ser até que ele peça a volta da ditadura. Achando que é um cidadão de bem que age contra a marginalidade do mal, forma-se um perfeito idiota.
Ah, mas os pobres da África a gente gosta
Em 2012, enquanto eu estava em Harvard, recebi a visita de uma orientanda do Brasil. Ela tirava fotos e se exibia no Facebook: “#Orgulho”, “Minha orientadora é pós-doutora por Harvard, e a sua?”. Em uma pausa, ela me perguntou em que escola eu havia estudado para ter chegado a uma universidade da elite internacional. Ela buscava identificação. Eu era um exemplo de uma mulher jovem, branca e “bem sucedida”, exatamente como ela se projetava nos próximos dez anos. Eu, sabendo que ela havia estudado do lado de dentro do muro, respondi que passei a parte mais rica da minha vida, dos 2 aos 17 anos de idade, do outro lado do muro. Ela não postou, mas bem que pensou: #MinhaOrientadoraÉMarginalzinha…”.
A reação dela era de decepção, vergonha e certa pena de mim. Ela ficou vermelha, desconcertada, sem chão. Engasgou-se e começou a tossir para disfarçar a cor de suas bochechas. Isso tudo porque ela sabia muito bem que tinha passado aproximadamente quinze anos de sua vida chamando pessoas como eu de “tigrada”. Ela se socializou negando a alteridade e, portanto, nunca imaginou que a relação de poder entre os atores dos diferentes lados do mundo se inverteria. Tudo que ela havia aprendido sobre aquele Outro era simplesmente de que se tratava de uma não-persona. O motivo pelo qual o seus vizinhos tinham menos do que ela não cabiam em sua imaginação. Fazendo parte da meritocracia sem mérito, ela simplesmente merecia ter o que tinha.
Ela, então, tinha que desvendar um enigma: como uma pessoa que tinha vindo de um lugar tão ruim podia estar em uma Universidade tão boa? A única maneira de ela se reconciliar com seus próprios preconceitos era me classificar como um daqueles casos excepcionais de superação que aparecem Globo Repórter. Eu respondi que não, que o destino de quem sai de lá tem sido muito variado. Há quem entra para o crime e morre antes dos 18 anos, mas a maioria tem histórias de lutas, perdas, mas, sobretudo, conquistas. Uma pena que ela nunca quis saber dessas histórias e deixou de crescer por meio da alteridade.
Ironicamente, essa aluna estava voltando de um programa voluntário para ajudar uma comunidade miserável de Ruanda.  Havia poesia – e alívio cristão – em (arrogantemente) querer salvar a África. Por algum motivo, os pobres e negros do lado de lá do oceano (que não assaltariam a sua caminhonete já adquirida aos 21 anos) eram mais dignos de sua profunda bondade do que os pobres e negros que ela havia ignorado por toda a sua existência.
Eu sempre me pergunto as razões pelas quais esse perfil de elite se comove com a pobreza romantizada, mas nega a solidariedade ao pobre da mesma cidade. Nessas horas, me vem à cabeça o dia em que meus colegas de escola estavam participando de um campeonato de futsal, mas não tinham quadra para treinar. Marcamos uma reunião com a diretora da escola do lado no intuito de solicitar, em nome de nossa vizinhança, o uso da quadra durante a noite, que ficava inativa. Em um ato de profunda humilhação, fomos “escoltados” até o escritório e recepcionados com as piadas das outras crianças (que não teriam tido coragem de debochar fora da fortificação). Depois de muita resistência, a diretora liberou o uso do ginásio, o que foi vetado uma semana depois em função de uma bola que tinha desaparecido. Apesar de eu ter convicção de que não houve roubo, eu nunca vou poder afirmar isso com 100% de certeza. O que eu posso afirmar para o resto da minha vida é que, desde então, eu sou contra a pena de morte – e de toda a concepção de que bandido bom é bandido morto – justamente porque muitos inocentes terão suas vidas abortadas por causa do preconceito. Quinze jovens tiveram seu sonho de competir interrompido por causa de uma falsa verdade: a de que nós só poderíamos ser ladrões. Consequentemente, “não adianta mesmo querer ser generoso e dar oportunidade para marginal”.
Entender que o pobre do lado tem o mesmo valor do pobre da África é uma tarefa para uma vida toda, pois envolve uma postura política de grandeza reflexiva intelectual e o reconhecimento de nossa responsabilidade sobre o Outro. Reclama-se da ineficiência do Estado brasileiro, mas toda a violência estrutural gerada por este Estado é reproduzida por sujeitos covardes e apáticos que negam, estigmatizam e inviabilizam o Outro.
Faz vinte anos que eu deixei a escola. Em minha última visita, em 2014, as instalações estavam muito mais deterioradas. As goteiras continuam lá. Sem professores em sala de aula, os alunos não podem ir para área de esportes porque o lugar está interditado há seis anos por risco de o teto desabar. Mas o muro da escola do lado continua a crescer.
Desde pequena eu aprendi que a violência é holista. As elites não são vítimas da violência urbana. A agressão sofrida é a mesma que se pratica.  O olhar de nojo é também assassino. E os muros ferem mais do que protegem.  Será que as pessoas imaginam o quanto podem crescer derrubando muros?


FONTE:http://www.geledes.org.br/marginalzinho-socializacao-de-uma-elite-vazia-e-covarde/#axzz3Q7I13xUO