A altives de uma rainha quilombola para se colocar em escrita – invenção de gênios da antiga civilização Egípcia – se faz necessário fazer reverência às deusas e deuses do panteão melanodérmico.
Não é simples ouvir o zunido do vento de dois séculos para escutar a voz ou o brado de uma guerreira, há necessidade de conexões ancestrais, o onírico a descrever mapas do passado nas matas que se localizavam onde é hoje o Parque São Bartolomeu (o mocambo principal da rainha), Pirajá, parte de Cajazeiras e Cabula, regiões que foram redutos de resistência quilombola na Cidade do Salvador-Ba, no século XIX. Para isso adentramos a mata, usando uma episteme de olhar de quebrada para tentar compor, neste breve ensaio, nuances da história de Zeferina do Quilombo do Urubu.
Zeferina, segundo Maria Inês Cortes de oliveira no livro “O liberto: o seu mundo e os outros” tinha origem angolana e foi trazida criança ainda, uma vunje em desassossego de viagem transatlântica, na primeira metade do século XIX, encolhida nos braços da sua mãe Amália, para Salvador. Sentiu a penumbra agônica da viagem no navio negreiro, ouviu o baque dos corpos negros no mar e percebeu que teria que ser grande para enfrentar as atrocidades da escravização. Sua mãe Amália, em saber matrilinear, lhe ensinou a tradição dos ancestrais, lhe demonstrou como acessar os poderes das inquices para manter a sua espiritualidade e realeza soberana diante das barbáries.
No saber da oralidade documental, a história costurada no boca-a-boca, no fluir perseverante das vozes históricas do povo negro, Zeferina foi uma rainha que fundou o Quilombo do Urubu, e uma sociabilidade baseada em modelos civilizatórios africanos para se proteger e salvaguardar todo o seu povo da escravidão. Foi uma líder com muito poder, a qual todos a referenciava e seguia as suas estratégias de luta. Ela organizou índios, escravizados fugidos, ou melhor, homens e mulheres que cunharam a sua liberdade com coragem, e libertos, no geral, que queriam a libertação para todos os negros na província do Salvador.
Zeferina tinha ambições grandiosas, sabia que a liberdade de boca da mata, o quilombo, era um principio libertador, e que poderia ruir, haja vista o quilombo do Cabula que foi destruído em 1807. Ela sabia disso, compreendia que era necessário se unir com os nagôs, invadir a cidade e matar os brancos escravocratas para constituir uma liberdade plena para todo o povo negro. O livro “Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil” organizado por João José Reis e Flávio dos Santos Gomes, mostra isso, pois Reis (2003) fala do relato involuntário do presidente da província se referindo a Zeferina com uma rainha e dos planos de invasão dela a Salvador para matar os brancos e conseguir a liberdade.
O planejamento do levante estava organizado para ocorrer no dia 25 de dezembro de 1826, no natal, como a própria Zeferina, em depoimento no Forte do Mar, local onde eram presos todos os quilombolas, afirmou quando se encontrava aprisionada. No entanto, um acontecimento fez com que a revolta tivesse o seu início antecipado, pois no dia 17 de dezembro alguns capitães do mato tentaram surpreender, pensando que havia poucas pessoas na mata do Urubu, e se depararam com cinquenta mulheres e homens aquilombados com espingardas, facas, arcos e flechas e fações, que sobre o comando de Zeferina os derrotaram. Assim, três capitães do mato foram mortos e outros três saíram gravemente feridos, conseguiram escapar e já em matas do Cabula encontraram o comandante de tropa, Jose Baltazar da Silveira, com doze soldados e um cabo, vindo de Salvador para sufocar o levante. A eles se juntaram mais de vinte soldados das milícias de Pirajá e foram atacar o Quilombo do Urubu.
Zeferina com arco e flecha na mão confrontou com os seus súditos toda a guarnição que, por ordem de Jose Baltazar da Silveira, abriu fogo contra os aquilombados que resistiram motivados pelo grito de guerra, o qual ecoou por todo o Urubu como uma onda sonora muito poderosa: “Morra branco e vivo negro! Morra branco e vivo negro! Morra branco e vivo o negro!” Foram intrépidos e corajosos na luta, mesmo estando em desvantagem, pois as tropas policias tinham as armas de fogo – maior poder letal nas suas ações no combate. No final, uma mulher e três homens do quilombo foram mortos, alguns fugiram e outros foram presos juntamente com a rainha Zeferina. Eles tentaram, em desfile de quebranto da sua realeza, destituí-la do seu orgulho; levando-a amarrada do quilombo do Urubu até a Praça da Sé com todas as ofensas e ódio racial dos escravocratas de Salvador.
Ela não se abateu, seguiu altiva e poderosa diante dos olhares – fel de atrocidades dos brancos – que a viam passar. Zeferina tinha a sua espiritualidade enraizada no poder das inquices, pilar que não permitiu esmorecer diante das impetrações dos escravocratas. Ela sabia que era grande e têm batalhas, mesmo que pareçam perdidas, não são; servem como liames poderosos que vão costurando as lutas das próximas gerações. São estros que motivam os novos espíritos à luta. Assim, seguiu firme e faleceu, sem fraquejar em seus ideais, no Forte do Mar, e teve, segundo a tradição oral da região, perpassada pelos vários terreiros de candomblé, o seu corpo enterrado nas terras do Cabula.
No Quilombo do Urubu havia, na sua constituição simbólica. uma lenda, que até hoje compõe o imaginário dos remanescentes quilombolas. Ela aparece transcrita na dissertação “O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu” de Silvia Maria Silva Barbosa. Nessa lenda o urubu é um pássaro mítico, que deu nome ao quilombo, e que nos momentos difíceis das batalhas, as grandes sacerdotisas entravam em transe, invocavam esse pássaro, enviando-os até a África, em vou de águia veloz e poderosa, para que levassem os clamores, as orações, as demandas e pedidos de ajuda aos ancestrais, às deusas e deuses do panteão negro. O urubu era o pássaro correio que ia à África e trazia as respostas às súplicas, trazia o axé para fortalecer o espírito dos quilombolas a continuarem lutando.
O mocambo principal do Quilombo do Urubu, onde as hordas de guerreiras e guerreiros se organizavam, teciam a sua liberdade e até hoje se constitui um local sagrado para o povo de santo – é o Parque São Bartolomeu, uma das últimas áreas verdes da cidade, localizado entre o bairro Pirajá e o Subúrbio Ferroviário de Salvador. São bairros que até o momento os reminiscentes de quilombo enfrentam o genocídio à juventude negra, o racismo estrutural, as imprecauções, intolerâncias e perseguições com as religiões afro.
FONTE:http://www.ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/11273/zeferina-rainha-quilombola-que-lutou-contra-a-escravidao-em-salvador-ba