Só aos vinte anos de idade consegui me reconhecer e autoafirmar negra. Mesmo quando tentei por muitas vezes me identificar como branca - por conta de ter mãe e avós maternos brancos -, não deixei de sofrer racismo. Fui, ao longo dos anos, embranquecida, e tive minha identidade e descendência invisibilizadas. Aprendi, somente muito tarde, que o colorismo é uma das formas cruéis em que o racismo semanifesta.
Autoafirmar-se negro é, além de uma postura política, um grito de resistência. Não há como combater uma opressão sem reconhecê-la primeiro e sem conhecer sua raiz.
Colorismo, amizades, é por definição a divisão de negros entre “os verdadeiros” (de pele escura) e os negros-não-negros (de pele clara). O colorismo é o que podemos chamar de uma forma legítima de racismo velado. Desde o nascimento, negros filhos mestiços de pai branco e mãe negra e vice-versa, são chamados pardos. Pardos por quê? O que é, afinal, ser pardo?
“Pardo” é mais um dos muitos termos criados para nos chamarem “não tão negros assim”. Somos chamados de negros-não-negros por não sermos aptos ao padrão que a branquitude estabeleceu para legitimar nossas identidades, mas ao mesmo tempo não possuímos privilégio branco. Nossos traços gritam e nenhum embranquecimento os cala.
O colorismo funciona como um agente de manutenção da branquitude e garante que a sociedade continue a enxergar o que é “branco/claro” como bom e o que é “negro/preto/escuro” como ruim. Somos embranquecidos porque é assim que servimos, sendo os negros que na verdade “nem são tão negros assim”. As revistas, a televisão, os outdoors; a publicidade nos diz que tudo bem ser negro se não for “tão negro assim”. Nossos referenciais são embranquecidos em campanhas publicitárias. Tentam nos sufocar através de todos os meios.
Nossos traços denunciam nossa ancestralidade e nos definem, portanto, como negros. Não somos mais “quase negros” ou “negros de pele clara”, somos negros.
Me lembro de que na infância, meu único referencial de mulher negra foi a avó de uma amiga minha. A mulher, uma negra gorda de cabelos lisos, era sempre elogiada pelos cabelos que mesmo brancos, chamavam a atenção. Eu também os elogiava e me perguntava, muitas vezes, como era possível uma negra de cabelos tão lisos. Hoje entendo que os cabelos da Vó Regina eram elogiados por remeter à branquitude e discorro, a partir de leituras que fiz há algum tempo, sobre quão tamanha é a crueldade do racismo. A miscigenação de negros começou na senzala, quando escravas eram estupradas por seus sinhôs. Será, então, que exaltar os traços “brancos” de um negro não é legitimar a dor daquelas mulheres? A animalização a qual elas foram submetidas?
Acho necessário, contudo, fazer a ressalva de que a autoafirmação não deve ser banalizada. A afirmação de sua negritude não é um espaço aberto para brancos se apropriarem e reivindicarem espaço de fala no nosso movimento. A autoafirmação é um agente empoderador para pessoas negras que foram embranquecidas durante a vida. Vi nos últimos dias duas pessoas se dizerem negras por terem o cabelo cacheado. Ser negro não é ter o cabelo cacheado. O cabelo cacheado é um traço europeu também, inclusive. Às pessoas brancas eu digo: cuidado com a apropriação e atenção ao local de fala.
A valorização de termos como “pardos”, “mulatos” e “morenos” nos aproxima do “quase brancos” e não somos isso. Somos negros. Reafirmo: existimos e somos muitos.
Como uma última consideração levanto o questionamento: Por que é que brancos existem em milhares de biotipos – ruivos, loiros, de olhos claros e escuros - e ainda assim são afirmados brancos, mas negros têm de se encaixar no padrão traços fortes/pele escura ou então são “não tão negros assim”?
FONTE:https://www.facebook.com/Feminiciantes/photos/a.230451850495877.1073741828.230165277191201/317761845098210/?type=1