"NÃO TEM IMAGENS EM MOVIMENTO DE CARLOS MARIGHELLA E CARLOS LAMARCA, POR EXEMPLO, QUE SÃO ÍCONES DE RESISTÊNCIA. DO OSVALDO TEM, E FORA ESSA QUESTÃO, ELE TEM UM LEGADO FORTE NA REGIÃO. É O ÚNICO NEGRO QUE PEGOU EM ARMA [...] PRECISA ESTAR NO PATAMAR DE HERÓI BRASILEIRO"
Tamanha violência pode ser explicada, do ponto de vista do exército na época, pela importância da região para os militares e porque consideravam ser causa de segurança nacional. O governo difundia para a população que era necessário proteger o país dos comunistas e rebeldes alinhados com as ideias dos soviéticos e cubanos. A guerrilha resistiu por quase dois anos, mas foi derrotada definitivamente no Natal de 1973, quando a Comissão Militar foi aniquilada pelo exército. Uma equipe do Major Curió, responsável pelo combate ao movimento no Araguaia, conseguiu chegar a uma reunião do corpo pensante da guerrilha e liquidou quase todos os presentes, com poucas exceções. Uma delas foi Osvaldão, que conseguiu fugir para a mata.
Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão
Osvaldão foi a figura mais forte da Guerrilha do Araguaia. Mineiro de Passa Quatro, foi o primeiro comunista do PC do B a chegar à região, entre 1966 e 1967. Negro, quase 2 metros de altura, ficou marcado e é até hoje lembrado pelo povo local por sua coragem e generosidade. Lá, é considerado um herói, e muitas pessoas o enxergam como um ser mítico, conforme descreve Ana Petta, atriz e produtora do filme “Osvaldão”. “Ele era muito hábil na floresta, tinha dom para caçar e pescar. Os índios falam da técnica dele para imitar os sons dos animais. Osvaldão se integrou à natureza e à vida de camponês. Mesmo não sendo nativo, ele ensinava as pessoas a sobreviverem na mata. Perguntei a um índio se eles o ensinaram a imitar os sons dos bichos e, para a minha surpresa, ele respondeu: ‘não, ele que nos ensinou’”.
Inteligente e hábil para aprender, Osvaldo dominava a língua francesa, idioma que aprendeu junto com o pai, um padeiro, por causa da amizade com um chefe de cozinha francês. Aprendeu também o tcheco, após uma passagem de 6 meses pela então Tchecoslováquia, em 1962. Antes disso, Osvaldão morou na cidade de São Paulo, onde fez o curso Industrial Básico de Cerâmica na Escola Técnica. Mudou-se para o Rio de Janeiro e se formou na Escola Técnica Federal como Técnico de Construção de Máquinas e Motores, em 1958. Seu porte físico avantajado o colocava sempre entre os melhores nos esportes que praticava; como atleta, foi campeão de boxe pelo Botafogo Futebol e Regatas após servir o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva - CPOR - do Rio de Janeiro, onde adquiriu preparação militar.
"A ÚLTIMA CAMPANHA DO EXÉRCITO FOI SUJA, FORAM PRATICADOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE"
Não se sabe ao certo quando Osvaldão foi visto pela última vez, acredita-se que tenha sido em 1973 ou 1974. Durante os quase oito anos em que esteve na região do Araguaia, tornou-se grande referência entre guerrilheiros e camponeses. “Andei pela região do Araguaia e conversei com as pessoas que conviveram com Osvaldão. Eles se lembram dele com orgulho e carinho. Ele era mariscador, o cara que entra no mato para tirar pele dos animais. Naquela época ainda não era proibido. Ficava dois, três meses lá, vivendo de caça, pesca e mariscando. Voltava com uma montanha de peles sobre as costas. Ele tinha esse poder do carisma, era capaz de interagir com pessoas de diferentes segmentos com a mesma simpatia e inteligência”, comenta Vandre. O cineasta acredita que Osvaldão merece um lugar de maior destaque na memória do brasileiro. “Não tem imagens em movimento de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, por exemplo, que são ícones de resistência. Do Osvaldo tem, e fora essa questão, ele tem um legado forte na região, algo que os demais não possuem. E, ainda, um terceiro fator muito importante: ele é o único negro que pegou em arma. Em uma população majoritariamente negra como a nossa, a história é contada sem Osvaldão. Falam de Zumbi dos Palmares e Antônio Candido, mas fica uma lacuna. Ele precisa estar no patamar de herói brasileiro”, completa.
Osvaldão era o guerrilheiro mais bem preparado para o confronto armado. Lendas à parte – muitos camponeses e até mesmo membros do exército acreditavam que ele transformava-se em pedra e em animais –, era temido pelos inimigos e admirado pelo povo local por sua força, coragem e pontaria. Foi comandante do Destacamento B, onde participou com êxito de vários combates. Em um confronto na região próxima ao Suruí, povoada por índios, foi dito pelos militares que Osvaldão baleou um oficial. Deste momento em diante, sua captura e morte tornou-se o principal objetivo do exército. “Os militares sabiam que ele havia passado pelo CPOR no Rio de Janeiro, sabiam da educação militar que ele tinha. Sem contar o treinamento de guerra que fez na China. Ele era o inimigo número um, pegá-lo era questão de honra e um grande troféu para o regime militar. Tanto que, quando ele foi morto, passearam com o seu corpo amarrado no helicóptero como forma de comemoração. Fazendeiros e mateiros contam que foi feito um grande churrasco em Xambioá, uma zona de prostíbulo. Todos foram convidados a participar de uma grande festa, e ficou só um núcleo do exército responsável por enterrar Osvaldo. Até hoje não se sabe o paradeiro da ossada dele”, conta Vandre.
"O POVO NEM SABIA DA GUERRILHA ATÉ O FIM DA DITADURA E, NA VERDADE, ATÉ HOJE NÃO SE SABE EXATAMENTE O QUE ACONTECEU [...] A GUERRILHA FOI RESULTADO DE UM PENSAMENTO POLÍTICO COMUNISTA"
Estima-se que o conflito tenha deixado 76 mortos. Além de Osvaldão, outra figura emblemática não teve seus restos mortais encontrados: Dinaelza Coqueiro. Dina esteve junto dos companheiros de guerrilha pela última vez em 30 de dezembro 1973, e foi vista pela última vez enquanto estava presa na base dos militares em Xambioá, onde insultava e cuspia nos oficiais que a interrogavam, incluindo o Major Curió. “Ela estava sendo procurada pelo Curió e suas tropas, e a ordem destes para os camponeses era que, se a vissem, deveriam capturá-la, do contrário poderiam ser fuzilados. No desespero, os camponeses a pegaram quando ela apareceu em busca de água e comida na aldeia. Conseguiram amarrá-la e foram avisar o Curió, mas Dina conseguiu fugir para a mata. Nas buscas pela floresta, a encontraram em cima de uma árvore. Ela ainda tentou lutar, mas foi a última vez em que foi vista”, detalha o pesquisador Osvaldo Bertolino.
Na época, a censura não permitia a divulgação de notícias sobre a guerrilha na imprensa local e nacional, ordens diretas do presidente Ernesto Geisel. O sigilo fazia parte do controle que o governo exercia sobre a população, que poderia ser inflamada e ter reações contra o regime militar por conta dos acontecimentos no Araguaia. Todo e qualquer vestígio do conflito deveria ser apagado. “O povo nem sabia da guerrilha até o fim da ditadura e, na verdade, até hoje não se sabe exatamente o que aconteceu, porque os arquivos do Araguaia não foram abertos. Mas a partir do fim da ditadura, começaram a aparecer reportagens e livros para esclarecer que a guerrilha foi resultado de um pensamento político comunista. A história não foi divulgada, pois a guerrilha poderia ter um apelo popular, não digo nos grandes centros, mas a massa camponesa e empobrecida do norte e nordeste poderia ter se motivado pela luta. A ditadura varreu qualquer vestígio, os corpos dos guerrilheiros são considerados desaparecidos. Os arquivos estão fechados, não há detalhes sobre as mortes e ainda hoje há receio em se falar no assunto. Há gente por aí que teria de se retratar pelo que aconteceu naquela época, por exemplo, Curió, que continua vivo. Mas há essa resistência porque o Exército e a Marinha têm culpa, foi um crime de Estado”, avalia Bertolino.
Com o abafamento da revolta, foi ocultada a história de Osvaldão, de maneira que ainda hoje poucos têm conhecimento de um dos principais líderes da luta contra os abusos cometidos na época da ditadura militar. “O Osvaldão sempre foi uma figura forte para quem se aproximou da história da guerrilha. Tem algo especial por ser um líder negro, por ter despertado diversas emoções, ódio e medo para os inimigos, sendo ao mesmo tempo uma figura carismática, um homem carinhoso. Merece ter a sua história contada”, conclui Ana Petta.