Prefácio
porM. Amadou Mahtar M’Bow,
Diretor
Geral da UNESCO (1974-1987)
É visto que, pelas vias que
lhes são próprias, o historiador só pode apreender renunciando a
certos
preconceitos e renovando seu método.
Da mesma
forma, o continente africano quase nunca era considerado
como uma
entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse
reforçar
a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma “África
branca” e
uma “África negra” que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente
o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis
misturas
entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias
entre as
sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras
intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas
dos povos subsaarianos.
Certamente,
a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia
mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos
dias
atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente africano,
pela sua
variedade linguística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas
de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro
fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado
africano
foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos
raciais
criadores de desprezo e incompreensão, tão profundamente consolidados
que
corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia. Desde que
foram
empregadas as noções de “brancos” e “negros”, para nomear genericamente
os
colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram
levados a
lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado
pela
pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras,
e
destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de
seus
dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior: a de
negro. Este
processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos
no
espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das
realidades
históricas e culturais não podia ser senão falseada.
A
situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em
particular,
desde que os países da África, tendo alcançado sua independência,
começaram
a participar ativamente da vida da comunidade internacional e
dos
intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em número crescente, têm
se
esforçado em abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e
abertura
de espírito, empregando – obviamente com as devidas precauções –
fontes
africanas originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os
próprios
africanos sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em
bases sólidas, a historicidade de suas sociedades.