sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A NEGRA QUE SE TORNOU MADRINHA DA INFANTARIA NAVAL

Paula, a Baiana, madrinha da Infantaria Naval | FOTO: Reprodução
Em sua coluna, Oswaldo Faustino conta a história de Paula, a Baiana, que mostra a humanidade na Marinha do Brasil tornando-se Madrinha da Infantaria Naval
Não. O lado humano nada tem a ver com a instituição, mas com parte de seus integrantes. Mais precisamente sua infantaria, os valorosos e sofridos Fuzileiros Navais. Descobri isso por meio do blog Coisa de Naval, de Gil Cordeiro Dias Ferreira, e do maravilhoso livro Mulheres Negras do Brasil, uma obra fundamental de Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, publicada pela Editora Senac,em parceria com a Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh).

Tirei essa conclusão ao tomar conhecimento da existência de Paula, a Baiana (seu nome verdadeiro, nem um nem outro revela), provavelmente do Recôncavo, como muitas que seguiram ainda jovens para o Rio de Janeiro, no século 19. Consta que sua chegada na então Capital Federal se deu em 1895. E ela foi residir numa pequena casa alugada no subúrbio de Rocha Miranda, na zona norte do Rio de Janeiro. Quituteira de mão cheia, Paula levava seu tabuleiro à porta do Corpo de Infantaria da Marinha, na Ilha das Cobras, para vender aos militares esfaimados bolinhos de tapioca, pés de moleque, cuscuz, laranjas e bananas, entre outras guloseimas. João Cândido certamente a conheceu. Aquela negra cativou não só a marujada, mas também o pessoal do clube dos oficiais.

Assim, ela foi autorizada a montar sua pequena cantina, conhecida como Mafuá da Baiana, no pátio do Batalhão Naval. Perfilava-se, ao lado do tabuleiro, diante das altas patentes e, aos poucos, foi conquistando respeito e admiração. Em datas cívicas, como o 7 de setembro e o 15 de novembro, vestia sua saia branca engomada, seu dólmã vermelho com botões dourados, ajeitava seu turbante branco e sobre ele a cesta de vime em que carregava seus quitutes. Considerada madrinha da Infantaria, era Fuzileira Honorária e marchava ao lado das tropas, aclamada pela população. Quando não estava vendendo ou preparando as guloseimas, Paula lavava roupas na Cova da Onça, hoje uma tradição na Fortaleza São José, na Ilha das Cobras. 

Ao falecer, em abril de 1935, foi homenageada pelo Batalhão Naval que cruzou os fuzis cobertos de flores brancas e vermelhas sobre sua sepultura. Um bonito gesto por parte de integrantes dessa instituição de 190 anos, fundada após aIndependência do Brasil. Infelizmente, em nome da segurança nacional, ela arranca famílias – com violência – de tradicionais terras quilombolas e perde a oportunidade de conhecer e reconhecer centenas de outras Paulas Baianas...

FONTE:http://raca.digisa.com.br/colunistas/a-negra-que-se-tornou-madrinha-da-infantaria-naval/2003/

LIDERANÇA FEMININA AFRICANA

Kimpa Vita, grande liderança africana | Ilustração: Serge Diantantu

Oswaldo Faustino conta a história de Kimpa Vita, grande liderança feminina que foi queimada na Inquisição por pregar um cristianismo africano

liderança feminina no movimento social negro tem um sem número de referências históricas. Uma delas floresceu no início do século XVIII, no então Império do Kongo. Depois de um período de 200 anos de decadência, a situação tenebrosa do reino levou a jovem profetisa Kimpa Vita a liderar uma reação religiosa e política. Facilmente, Kimpa Vita pode ser comparada à jovem camponesa francesa Joana D’Arc, acusada pela Inquisição de bruxaria e de blasfemar. Assim como ela, a africana teve visões, cativou as massas, enfrentou guerras e irritou os ortodoxos do catolicismo. Foi igualmente acusada de heresia e executada na fogueira. A diferença é que a francesa, cinco séculos depois, recebeu o título de mártir e foi canonizada. A africana, não. Algumas de suas ideias, porém, podem inspirar a inculturação evangélica expressa nas chamadas missas-afro.

O Império do Kongo, fundado no século XIII por Ntinu Wene, seu primeiro manicongo – título do imperador –, existiu até 1914. Seus 130 mil quilômetros quadrados se estendiam pelo que é hoje o norte de Angola, a República Democrática do Congo (ex- Zaire), a República do Congo (Brazzaville) e parte do Gabão. Sua capital era Mbanza Kongo. Ao chegarem ali, no final do século XV, os navegadores portugueses encontraram uma nação que gozava de supremacia: civilização desenvolvida e opulenta, que vestia seda e veludo; soberanos poderosos, mais de 1 milhão de habitantes, terras férteis cultivadas, indústrias, tecnologia de extração do sal, produção de joias e recursos naturais, como o ouro, o cobre e o ferro. Convertido, o manicongo Nzinga-a-Nkuwu, em 1509, tornou o catolicismo a religião oficial do Império. Mudou seu nome para João I e o da capital para São Salvador. Os demais soberanos que se sucederam também adotaram nomes europeus. Porém, no final do século XVII, o Kongo vivia duas realidades: forte influência dos missionários e uma guerra civil, por disputa pelo trono ocupado por Pedro IV. Ele então abandonou a antiga capital, que foi arrasada pelos dissidentes, e se refugiou nos montes Kibangu.

Foi neste contexto que nasceu, em 1684, numa família aristocrática e católica, Kimpa Vita, batizada Beatriz. Em 1704, aos 20 anos, ela teve uma experiência de quase morte. Ao se recuperar, afirmava que Santo Antônio de Pádua havia reencarnado em seu corpo. Percorreu todo o território difundindo uma forma de sincretismo religioso, denominado Antonismo. Dona Beatriz, como passou a ser chamada, pregava que o Kongo era a Terra Prometida, que Jesus Cristo havia nascido em São Salvador e sido batizado em Nsundi. Também afirmava que a Virgem Maria e São Francisco eram originários do Kongo. Questionava a alvura dos anjos que, em suas visões, eramnegros. E acreditava que o império só reencontraria a paz com a partida dos europeus, que espoliavam os africanos dos seus bens e da sua humanidade. Tanto Pedro IV quanto o general Pedro Constantino da Silva, seu adversário político, sonhavam em ter Dona Beatriz como aliada. Mas diante da ameaça a seus privilégios, os missionários capuchinhos, sob a liderança do italiano Bernardo di Gallo, convenceram o manicongo do perigo que representava a popularidade da jovem e suas teorias contra o eurocentrismo. Acusada de heresia, Kimpa Vita teve a sua prisão decretada. Ela se refugiou na floresta com seus aliados. Foi presa dias após dar luz a um menino. Interrogada por di Galllo, afirmou que seu filho vinha do céu e seria o salvador de seu povo, o que foi utilizado como prova da suposta heresia. Em 2 de julho de 1706, Kimpa Vita foi queimada na fogueira da intolerância religiosa e da dominação política. Hoje, em Angola, há uma universidade com seu nome.

FONTE:http://raca.digisa.com.br/colunistas/lideranca-feminina-africana/2123/


Fundador da primeira escola de samba, Ismael Silva já foi impedido de assistir aos desfiles.


Criador ao lado da sua turma do Estácio da primeira escola de samba do país — a Deixa Falar —, Ismael Silva passou por maus bocados para ver sua criação de perto. Sem dinheiro para comprar o ingresso de Cr$ 8 mil para assistir à passagem das agremiações no carnaval de 1965, o compositor fez um apelo à Secretaria de Turismo para ter direito de acompanhar de perto os desfiles. O pedido nem foi considerado.

Em 75, virou enredo da escola Canarinhos da Engenhoca, de Niterói. No mesmo ano, ganhou dos órgãos públicos dois ingressos nas cadeiras cativas para ver os desfiles através de uma lei estadual. Mas no carnaval seguinte, Ismael, aos 70 anos na época, foi barrado por funcionários da Riotur, quando tentava chegar ao camarote e ocupar seu lugar devido — e merecido.

“Nem sequer me deixaram falar com o pessoal da imprensa, que podia explicar tudo. Fui humilhado, tive que me retirar como se fosse um marginal. No meu caso, por exemplo, mesmo quem não me conhece vê logo que não se trata de um delinquente. Não ofereço perigo nenhum, caminho com dificuldade”, desabafou Ismael Silva ao jornal O Globo na época.

A convite do diário, o poeta do Estácio voltou no dia seguinte, na segunda-feira de carnaval, para acompanhar os desfiles de blocos e ranchos. Só não foi impedido de entrar novamente após a insistência do repórter que explicava ao segurança quem era o senhor de bengala. Ismael entrou e foi cumprimentado por Paulinho da Viola, um dos jurados do concurso de ranchos. Ficou por lá durante duas horas e depois pediu para ir embora. Estava emocionado.

Para tentar contornar o episódio, foram entregues dois ingressos de arquibancada para os desfiles no ano seguinte. Ismael recusou. Não pisaria mais naquele palco. Morreu em 78, desgostoso com aquele mundo que ajudou a criar.