terça-feira, 7 de novembro de 2017

Como a ditadura perseguiu militantes negros

Documento inédito mostra como a repressão monitorava integrantes do então embrionário movimento negro brasileiro.
Abdias do Nascimento, entre outros integrantes do movimento, foram espionados
Com medo de que a luta pela igualdade racial crescesse à luz de movimentos internacionais como o Panteras Negras e se voltasse contra a polícia, a ditadura passou a seguir os passos de militantes e reuniões do embrionário movimento negro brasileiro.
Documento de 24 de outubro de 1979 mostra como o IV Exército, no Recife, descrevia um foco de “problemas”. “A partir de 1978 apareceu um novo ponto de interesse da subversão no País, particularmente nos estados do Rio de Janeiro e, com mais ênfase, na Bahia: a exploração do tema racismo, procurando demonstrar a sua existência e colocar o negro brasileiro como motivo de discriminação”, diz o texto de sete páginas. 
O relatório nunca antes divulgado revela que o “método” utilizado para a obtenção das informações deu-se pela “infiltração em entidades dedicadas ao estudo da cultura negra, por meio de palestras em reuniões e simpósios”, como a IV Semana de Debate sobre a Problemática do Negro Brasileiro, em abril de 1978 na Bahia. A temática das palestras, segundo os militares, tratava de temas como “a tão falada democracia racial não passa de um mito”, “o racismo no Brasil é pior do que no exterior, porque é sutil e velado”, “a existência da Lei Afonso Arinos, contra o racismo, é prova de que ele existe”, “a Abolição da Escravatura foi imposta pelas necessidades da economia capitalista e não por uma preocupação sincera com a situação do negro”. 
O documento havia sido solicitado em 11 de junho, por meio da Lei de Acesso à Informação, ao Comando do Exército, que oito dias depois respondeu não possuir arquivos sobre o monitoramento de ativistas negros. A Controladoria-Geral da União (CGU) encontrou, no entanto, o relatório no Arquivo Nacional, em Brasília, há duas semanas. Segundo o ouvidor-adjunto da CGU, Gilberto Waller, esta é a primeira vez que se encontra um documento confidencial elaborado exclusivamente para tratar do tema, quando o que se via até então eram trechos e citações a outros textos. “Vemos que o Estado se preocupou com o movimento negro a ponto de ter classificado as informações”, explica. “Na visão da CGU, em termos de acesso à informação, é um grande ganho conseguir algo de valor histórico tão relevante.” 
O relatório, cujo rodapé alerta: “Toda e qualquer pessoa que tome conhecimento de assunto sigiloso fica, automaticamente, responsável pela manutenção de seu sigilo. Art. 12 do decreto no 79.099, de 6 de janeiro de 1977”, cita a mobilização nacional em torno da formação do movimento contra a discriminação racial. “Os grupos do Movimento Negro de Salvador são: Ialê, Malê, Zumbi, Ilialê, Cultural Afro-Brasileiro. Esses grupos apresentaram, no dia 8 julho de 1978, ‘moção de solidariedade aos integrantes do movimento paulista contra a discriminação racial, pelo ato público antirracista do Viaduto do Chá’”
O objetivo era evitar que a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos alcançasse o País"
O ato, segundo a socióloga Flavia Rios, autora da tese Elite Política Negra no Brasil: Relação entre movimento social, partidos políticos e estado, diz respeito à marcha que saiu naquele dia do Viaduto do Chá em direção ao Teatro Municipal para a criação do Movimento Unificado contra a Discriminação Racial, que mais tarde se tornaria o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial. “Ele é formado por ativistas de várias regiões do País, tem essa característica nacional”, conta a também coautora da biografia sobre a militante negra Lélia Gonzalez. “Havia uma preocupação da ditadura de que ideais do movimento armado Panteras Negras, por exemplo, e da luta dos direitos civis americanos pudessem chegar aqui. Por isso, o regime acompanhou vigilantemente manifestações políticas e encontros.”
O informe até pouco considerado inexistente fala ainda sobre uma “campanha artificial contra a discriminação no Brasil” e lembra que, “em virtude das restrições políticas”, o Movimento Negro de Salvador passou a realizar reuniões paralelas e a adotar organizações celulares, com base nos “centros de luta”, compostos de três integrantes. A capital baiana teria sete desses centros, cuja função era “mobilizar, organizar e conscientizar a população negra nas favelas, nas invasões (de terras urbanas), nos alagados, nos conjuntos habitacionais, nas escolas, nos bairros e nos locais de trabalho, visando a formar uma consciência dos valores da raça”.
Além do encontro nacional do Movimento Negro de Salvador, entre 9 e 10 de setembro de 1978, no Rio de Janeiro, os arapongas descrevem a Terceira Assembleia Nacional do Movimento Negro Unificado, em 4 de novembro de 1978, na capital baiana, com militantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Citam o Congresso Internacional da Luta contra a Segregação Racial entre 2 e 3 de dezembro de 1978, em São Paulo. E relatam o ciclo de palestras do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, no segundo semestre de 1978 em Salvador, do qual participaram opositores como o deputado federal baiano Marcelo Cordeiro e o paulista Abdias do Nascimento, professor emérito na Universidade de Nova York. Além do acadêmico, são citados militantes monitorados como José Lino Alves de Almeida e Leib Carteado Crescêncio dos Santos, além do senador baiano Rômulo Almeida e “agitadores angolanos no movimento negro, caracterizados como refugiados da guerra civil”.
Em relação ao teor da agenda do Movimento Negro à época, os repressores ressaltam que a pauta era composta de pontos como a necessidade de se contestar o regime, aprofundar o engajamento no movimento pela anistia, projetar no exterior a imagem do “mito da democracia racial brasileira”, escolher o 20 novembro para o Dia Nacional da Consciência Negra, melhorar as condições de emprego da população negra, e buscar dar fim à sua marginalização na sociedade e à maior proporção de negros nas penitenciárias. 
Estima-se que 42 dos 434 mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura eram negros.
FONTE:https://www.ceert.org.br/noticias/direitos-humanos/8389/como-a-ditadura-perseguiu-militantes-negros

Frente Negra Brasileira: Gestando um projeto político para o Brasil

Dia 16 de Setembro de 1931 foi a fundação da Frente Negra Brasileira o primeiro partido de  afro brasileiros, um importante marco histórico e político para o movimento negro.
Confira a seguir um texto escrito pelo Márcio Barbosa, do Quilombhoje Literatura:  
Nem sempre o protagonismo afro-brasileiro é lembrado de forma positiva ao longo da história. A nós os relatos oficiais geralmente reservam o papel de coadjuvantes nos grandes eventos, especialmente naqueles que ajudam a definir a situação sociopolítica do país. Quando não nos dão esse papel, tentam desqualificar nossa luta rotulando-a de diversas maneiras negativas.
No entanto, uma consulta a livros e teses que vêm sendo produzidos ao longo dos anos dentro da própria comunidade e por estudiosos, afrodescendentes ou não, revela que o protagonismo do povo negro ao longo da história foi e é muito intenso.
O pós-abolição, por exemplo, é rico em termos de criação de associações afro-brasileiras, na sua maior parte com atividade de lazer e de cultura. Outras entidades tinham caráter assistencialista. Algumas se dedicaram à publicação de jornais numa época em que os índices de analfabetismo eram terríveis.
Em São Paulo uma das entidades mais conhecidas foi o Centro Cívico Palmares, fundado em 1926. Essa associação ultrapassou os limites das entidades recreativas ao pautar o tema da participação política.
Em 1931 surgiu a Frente Negra Brasileira, aprofundando os temas que o Palmares esboçara e atingindo um nível de organização e atuação que a faria ser lembrada através das décadas. Fundada no dia 16 de setembro no salão das Classes Laboriosas, constituiu sede posteriormente na Casa de Portugal, na avenida Liberdade, na cidade de São Paulo. Nesse local, a Frente Negra manteve escola, departamento de assistência social e jurídica, grupo de teatro, jornal, além de promover palestras e os grandes bailes organizados pelo grupo das Rosas Negras, dentre outras atividades.
É importante notar o contexto em que a Frente Negra surge. Em depoimento para o livro “Frente Negra Brasileira”, Aristides Barbosa afirma que, ao chegar em São Paulo vindo da cidade de Mococa, encontrou no bairro da Bela Vista os homens negros desempregados nas ruas. As mulheres é que, trabalhando como domésticas, arcavam com o sustento das famílias.
Na época grassavam as absurdas teses do racismo científico, para o qual negros e mulatos formavam uma raça degenerada e por isso estavam fadados ao desaparecimento. Entre os adeptos dessa concepção de raça estavam Nina Rodrigues e Monteiro Lobato. Essas teses transformaram-se em políticas públicas, com o incentivo à imigração europeia dando corpo ao desejo de embranquecimento, pois para os ideólogos do Brasil do início do século o país só atingiria o status de “civilizado” quando a “raça degenerada” desaparecesse do seio de sua população. Os anúncios de jornais da época estampam anúncios que procuram por empregados brancos.
Nesse sentido a Frente Negra estabeleceu um projeto político de inclusão do povo negro na sociedade brasileira. Nos estatutos da Frente afirma-se que a entidade “visa à elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional e física; proteção e defesa social, jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra”.
Esse objetivo amplo foi perseguido com tenacidade, podendo-se destacar nesse passo algumas diretrizes centrais de ação: a construção da ideia de comunidade, independentemente de cor de pele, com uma história comum, um passado comum, com heróis como Zumbi e Henrique Dias;elabora-se aqui uma identidade negra; a educação como um fator de superação da situação atual (a educação pode ser formal, como na escola frentenegrina, mas pode ser mais geral, humanista, como nas palestras, no teatro, nas leituras de poesia, no incentivo à leitura de livros); atuação político-partidária para alcançar objetivos mais amplos.
Deve-se notar que essa ação é pensada em termos nacionalistas. Para os frentenegrinos, o negro, por sua contribuição à construção do país, deve levar sua luta em termos nacionais, tem direito à terra, tem direito a participar da vida política e da tomada de decisões e especialmente deve pensar na disputa de poder. Embora houvesse informação dos movimentos internacionalistas, como o da volta à África, de Marcus Garvey, a Frente concebe sua atuação somente em termos de Brasil.
A unidade pretendida pela Frente Negra teve resultados concretos. Alguns autores afirmam que ela chegou a ter duzentos mil filiados em todo o Brasil, com ramificações em vários Estados. No Recife, o poeta Solano Trindade chegou a criar a Frente Negra Pernambucana. A carteirinha da Frente valia como um documento de identidade. Em 1936 a Frente foi registrada como partido político. O primeiro partido político negro brasileiro.
Dirigida por afro-brasileiros que tinham superado a barreira do analfabetismo e se tornado professores, a Frente teve de lidar com diversas contradições. Seu primeiro Presidente, Arlindo Veiga dos Santos, era patrianovista, isto é, monarquista, e, embora sempre afirmasse que essa sua posição não interferia em seu papel como frentenegrino, as maiores críticas à Frente e muitas das cisões que surgem derivam dessa postura e da linha autoritária que a diretoria teria imprimido à Frente, com a formação, por exemplo, de uma milícia. Logo no seu início, o grupo do jornal Clarim da Alvorada, de José Correia Leite, rompeu com a Frente Negra. Na Revolução de 1932, ela decidiu por se manter neutra, não aderindo à luta empreendida pelos paulistas. No entanto, houve uma cisão e de dentro da Frente saiu um grupo que formou a Legião Negra para lutar ao lado dos paulistas.
Em 1937 um decreto de Getúlio Vargas que colocava na ilegalidade todos os partidos políticos atingiu também a Frente Negra, provocando seu fechamento. Ela ainda tentou se rearticular como União Negra e depois como Clube Recreativo Palmares e, em décadas posteriores, houve tentativas de se reconstruir a Frente Negra empreendidas por Francisco Lucrécio (ex-primeiro secretário), e outros, mas a época de ouro havia terminado.
Porém, a Frente permanece atual, talvez porque tenha tido o mérito de elaborar um projeto político para o negro e para o Brasil. Nesse projeto político de inclusão, a raça seria um fator de mobilização e coesão, e não de segregação, como vista e sentida no dia a dia. Agindo no sentido de privilegiar a educação, a ação cultural e a participação política baseada no que poderíamos chamar hoje de voto étnico, suprapartidário, a Frente supriu carências imediatas de parte da população negra. Ainda surgirão muitos estudos sobre a Frente, muitos deles tentando desqualificá-la, mas os temas que pautou permanecem atuais.


FONTE: https://www.ceert.org.br/noticias/direitos-humanos/8278/frente-negra-brasileira-gestando-um-projeto-politico-para-o-brasil