terça-feira, 25 de março de 2014

Campanha por Enedina – mulher, negra e pioneira

por Vanessa Fogaça Prateano

Você sabe quem é Enedina Alves Marques? Não são muitos os curitibanos e paranaenses em geral que conhecem ou já ouviram falar da história desta mulher. Mas deveriam. Enedina foi a primeira mulher a se formar engenheira pela Universidade Federal do Paraná – e a primeira engenheira negra do Brasil. Na década de 40, quando as brasileiras votavam não fazia uma década, o divórcio ainda não havia sido aprovado e não havia as cotas raciais, mecanismo mais do que justo para promover a inclusão daqueles que representam mais de metade da população brasileira.

Esta semana, Enedina começa a aparecer em rodas de conversa e nas mídias sociais. Isso porque há uma campanha, divulgada pela coluna Entrelinhas  da Gazeta do Povo, editada pela minha colega Marcela Campos, para que ela rebatize o Edifício Teixeira Soares, aquele perto da Ponte Preta, na Rua João Negrão, perto do Shopping Estação, no bairro Rebouças. O prédio pertenceu à antiga Rede Ferroviária Federal e foi doado à Federal, que em breve instalará ali um novo campus. Uma singela (ela certamente merece mais) homenagem a uma de suas alunas, pioneira e exemplo para várias gerações de mulheres.


Enedina já é nome de escola, batiza o Instituto Mulheres Negras de Maringá. Também mereceu busto do Memorial à Mulher Pioneira e o Instituto de Engenharia do Paraná não se esqueceu dela — é a instituição que cuida de seu túmulo. Mas certamente ela merece mais, a começar, por parte da UFPR. Em janeiro deste ano, quando se comemorou o seu centenário, não se soube de nenhum evento especial promovido pela universidade para lembrar de seu nome, Perdoem-me se eu estiver enganada, e deixem um comentário se conhecem alguma ação.

Este blog, portanto, pede encarecidamente a seus leitores que ajudem a engrossar a campanha. Se hoje ser mulher e negra dentro da universidade é um grande desafio — permeado por trotes machistas e racistas, por comentários e piadas humilhantes vindos de colegas e professores e por esteriótipos que cercam a mulher que vai para a área de Exatas e Tecnológicas –, imaginemos os leões que Enedina teve de matar para chegar lá. Vamos relembrar e manter viva essa história.

Para saber mais sobre ela, há esse  texto do meu colega José Carlos Fernandes, publicado há exato um ano. Também há um  trabalho  sobre ela na Revista Vernáculo, de autoria de Jorge Luiz Santana. Se você conhece outras fontes, por favor, publique nos comentários.

FONTE:http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-genero/24002-campanha-por-enedina-mulher-negra-e-pioneira

Eu, preta, pobre e crackeira - Por: Priscila Tamis

"Engoli uma frase qualquer, dessas que uma branca-intelectual-estudada-militante consegue articular. E senti cada vez mais perto todos aqueles olhos cheios de ódio, aqueles corpos agressores, aqueles dedos na minha cara. A polícia já estava ali, em cada um deles"

Por Priscila Tamis*

Hoje estava na rua Frederico Abranches, zona central de SP, no Complexo Cracolândia. Caminhava sozinha em direção ao metrô Pedro II. Peguei a passarela. No meio dela dou de cara com um amontoado de pessoas que rodeavam outras três. Dois homens imobilizavam outro que estava estendido no chão.

O que aconteceu?

O cara roubou a carteira dele!

O "cara" era um homem negro, alto, vestido de um jeans. Naquele momento o "cara" era um preto, pobre, crackeiro que tinha roubado uma carteira e tinha agora o rosto esfolado no chão.

"Ele" segurava os braços do "cara" e o pressionava com as pernas contra o chão, com a colaboração de um outro justiceiro qualquer.

Moço, você pegou sua carteira?

Eu tô com a carteira!

Então larga o "cara"!

Naquele momento o "cara" sentia na pele toda revolta e miséria política-afetiva que o corpo multidão pode portar.
Uma garota se aproximou com dedo em riste na minha cara.

Você é uma escrota!

Aí começaram os instantes dos mais oprimidos que já vivi – porque naquele instante eu já era outra. A pele escureceu, a grana da sobrevivência escapou e o crack me invadiu. Bem assim. Nunca, em nenhuma situação, em nenhum estudo, movimento social ou poéticas homônimas senti isso.

Ela sentia ódio. Me olhou no olho, como se fosse a última coisa que faria na Terra. E repetia.

Você é uma escrota!

Ela cada vez mais perto.

Ao mesmo tempo, um homem branco limpinho, de uns cinquenta anos, aproximou-se mais e gritou.
Você é cúmplice desse cara!

E outro qualquer – nisso meus olhos já quase não enxergavam – aproximou-se também.

Ele tá contendo o cara pra chamar a polícia! – esclareceu mais outro justiceiro.

Consegui que a roda se virasse pra mim. Quase todos ali me rodeavam. E aí o vômito chegou à garganta, engoli uma frase qualquer, dessas que uma branca-intelectual-estudada-militante consegue articular. E senti cada vez mais perto todos aqueles olhos cheios de ódio, aqueles corpos agressores, aqueles dedos na minha cara. A polícia já estava ali, em cada um deles.
Em 1919, em Omaha (EUA), o operário negro Will Brown é linchado, e sou corpo mutilado é queimado pela multidão branca. Realidade não tão distante (Library of Congress)

Eu era a preta, pobre, crackeira. Sem cristianismos. Senti o que jamais senti na pele. Nenhuma bomba de gás lacrimogêneo me fez sentir assim.
Bem assim. Eles estavam prontos pra rasgar minha cara no concreto, como faziam com o preto, pobre, crackeiro que bateu carteira. Eu roubava a dignidade que eles sentiam em reprimir. Bem assim. A força de multidão que os impulsionava, a força da alienação do efeito massa que pode acontecer quando um monte de gente se junta seja para o que for. Pelo menos seis pessoas estavam a menos de um palmo de mim. E eu, preta-pobre-crackeira-escrota senti a violência da polícia.

Eu não apanhei. Porque me calei, deixei o "cara" já de pé, mas ainda encurralado, virei as costas e segui. Aos soluços e engasgada com o vômito que não saiu. Mais ou menos cinquenta minutos – na intensidade felina dos mais ou menos cinquenta anos daquele senhor – de choro com soluço no metrô, na rua, no ônibus. Do afeto agonizante e humilhado não privei nenhum passante.

Afinal, a violência é de quem?

O drama do protagonista que é sempre o primeiro a agonizar a vida que se vive.

Hoje eu não subverti nada, não construí nada, pouco me manifestei. Fui gente covarde com medo de apanhar. 

Fui gente que quer viver e não se orgulha em sangrar. Fui gente cansada, rasgada no peito.

Nesse dia que fui branca e fui preta, que fui classe média-intelectual e fui crackeira, eu só queria, como quero todos os dias, que toda a gente pudesse ser gente nessa cidade.

Caros repressores,

Caros ressentidos,

Caras pessoas que reproduzem a lógica de massacre,

Diante de toda bomba e de todo dedo em riste,

Diante de todo medo que senti,

Posso dizer agora, neste mesmo dia de hoje, que vossa força reativa encarnou neste corpo que vos fala a máxima potência da indignação. Senti o que jamais vivi na minha vã filosofia militante. Senti no corpo o ódio da farda que vocês vestiram. Vocês ameaçavam com humilhação e estupidez inúteis a vida daquele homem. Vocês ameaçaram a minha vida.

Luto com tudo o que posso contra vossas fardas.

Luto contra as minhas fardas.

E se hoje pelo meio do dia eu não falei
Pela noite escrevo e publico.

Quando a gente se expõe ao acontecimento ele acontece.

Também tenho minhas armas.

(quais modos de existência estamos produzindo nessa cidade?)

Toda força aos que lutam!

*Psicóloga Esquizoanalista pela UNESP/Assis e AT. Mestre em Ciências pelo programa de pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Integrante da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial e Assessora / Programadora Cultural na Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas da cidade de São Paulo.



FONTE: http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-genero/24005-eu-preta-pobre-e-crackeira-por-priscila-tamis