É possível que você já tenha escutado a frase "O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias." Não quero desapontar a nenhuma das minhas irmãs E irmãos, mas é preciso refinar e realinhar a nossa perspectiva enquanto mulheres e homens pretas/os, ou seja, africanas e africanos. Pode ser que, dependendo do seu nível de boa vontade para com a ideologia feminista, a frase tenha causado alguma comoção. No entanto, a frase é falaciosa. O feminismo matou e mata todos os dias mulheres E homens africana. De fato, ele tem sido, assim como todo tipo de ideologia branca, um fator de desintegração e de morte ontológica da nossa comunidade.Aqui minhas referências são mulheres E homens interessados e compromissados com a agência africana; mulheres E homens que agem no melhor interesse do nosso povo. Isto significa agir no centro das suas próprias experiências histórica, social, cultural, econômica e espiritual. Minhas referências são mulheres E homens que sempre se mantiveram conscientes de sua africanidade e buscam a Afrocentricidade a fim de contribuir com a retomada de nossa dignidade como seres humanos segundo nossos próprios princípios e definições de humanidade. Mais uma vez, agindo no melhor interesse do povo preto/africana. Como estas mulheres E homens, também me proponho a esta construção e por isso, este texto. Meu posicionamento de mulherista africana é inegociável. Meu senso de humanidade é inegociável, e, como vida não se barganha, abrir mão das minhas próprias definições neste momento crítico é perpetrar e colaborar com séculos de escravização, colonialismo e deslocamento¹. Localização
Esta pode paracer irrelevante, mas é uma questão importante e deve ser colocada sempre que absorvemos (ou antes de absolver de seu julgamento) qualquer tipo de informação, principalmente quando relacionadas ao nosso povo. Quem é e onde está localizado o interlocutor no momento de sua fala? Onde sua mente, sua construção identitária se encontra no momento de uma análise? É necessário que estejamos atentos a este fator, já que coexistimos em um mesmo cenário de realidades e perspectivas diferentes, e muitas vezes antagônicas. Assim, não é diferente quando se trata de pretas/os e brancas/os. No caso específico do feminismo devemos questionar: qual era a posição das mulheres E homens pretas/os enquanto mulheres brancas buscavam sua emancipação? De quem parte a narrativa de que o feminismo é uma ideologia de libertação? Libertação para quem? Às custas de quem? Qual o interesse de quem fala?
"Por que não o feminismo para a mulher africana?"
Hoje sabemos que a ideologia feminista está estruturada sobre pilares inteiramente racistas que são inerentes à cultura europeia e que pintar o feminismo de preto não dá conta das demandas de mulheres E homens pretas/os. Clenora Hudson-Weems (2003: 155-6), em seu artigo Africana Womanism publicado em The Afrocentric Paradigm, Ama Mazama, faz uma pequena narrativa sobre as bases primordiais do feminismo e sua relação e atitude em direção ao povo africano:
Por que não o feminismo para a mulher africana? Para começar, a verdadeira história do feminismo, suas origens e seus participantes revelam seu baraulhento plano de fundo racista, desta forma estabelecendo sua incompatibilidade com a mulher africana. O feminismo, anteriormente chamado Movimento de Sufrágio da Mulher nos Estados Unidos, começou quando um grupo de mulheres brancas liberais, cujas preocupações então eram pela abolição da escravidão e direitos iguais para todos independente de raça, classe e sexo, dominou a cena entre as mulheres a nível nacional durante a primeira metade do século dezenove. Durante a Guerra Civil, tais líderes como Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton sustentaram a filosofia universalista do direito natural das mulheres à plena cidadania, que incluia o direito ao voto. Entretanto, em 1870 a Décima Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos ratificou o direito de voto aos homens africana, deixando as mulheres, mulheres brancas em particular, e seu desejo pelos mesmos direitos sem atenção. As mulheres brancas da classe média ficaram naturalmente decepcionadas por terem presumido que seus esforços a fim de assegurar cidadania plena para o povo africana iria consequentemente be neficiá-las também em seu desejo de cidadania plena como cidadãs eleitoras. O resultado foi uma reação racista em direção à emenda e ao povo africana em particular.
A continuação da propaganda racista destas mulheres "libeirais" desmascaram qualquer posição de libertárias e imparciais que se tente sustentar dentro do movimento que surgia (e do atual movimento). Em 1890, mulheres brancas do norte fundam a Associação do Sufrágio Nacional Americano (NAWSA) e têm o apoio das mulheres brancas do sul. Segue Hudson-Weems sobre a agenda da associação que defendia que
...o voto das mulheres deveria ser utilizado principalmente por mulheres brancas de classe média, que poderiam auxiliar seus maridos a preservar as virtudes da República contra a ameaça de desqualificados e biologicamente inferiores (homens africana), que com o poder do voto poderiam ganhar ponto de apoio político no sistema americano.
A liderança do movimento sustentava, na figura da conservadora sufragista Carrie Chapman Catt, a necessidade de aliança entre homens e mulheres brancos a fim de preservar os fortes valores anglo-saxônicos e a supremacia branca. Assim, deveria ficar assegurado não somente a exclusão do voto dos homens africana, mas também de imigrantes. A partir disso, se torna mais fácil de identificar que, embora a fala seja em favor das mulheres (brancas), quando se trata da relação com o povo africana, a solidariedade de raça toma a frente do discurso. A suposta ameaça vista no novo status dos homens africana como eleitores fez com que a verdadeira face do feminismo fosse exposta, já que aqueles como "membros de uma raça inferior, não deveriam ser concedidos o direito de voto antes da "metade" feminina do grupo dominante" (Hudson-Weems, 2003). Tal postura de hostilidade e racismo em direção ao homem africana e ao povo africana em geral não pode ser deixada de fora de séria avaliação no impacto das ideologias brancas sobre o corpo, a mente e o espírito de africanas. Ao fazer uma análise localizando um discurso em um contexto específico, é possível aplicar a estrutura com propriedade nas experiências históricas (das mulheres) da Europa em uma realidade de misoginia, machismo e patriarcalismo, sendo assim a possível a compreensão da adesão de mulheres brancas ao feminismo. No entanto, colocar todas as mulheres sob a história das mulheres brancas é problemático. Não há nada mais arrogante nem racista do que relegar toda a autenticidade histórica feminina às mulheres brancas. De fato, dificilmente conseguimos pensar em mulheres brancas que tenham tido papel de protagonismo na história branca (se comparado aos homens brancos) sem estarem relacionadas aos seus maridos. De quantas mulheres gregas ou romanas da antiguidade conseguimos lembrar?Os problemas que mulheres E homens africana passaram a enfrentar com a escravização europeia apontam precedência da dominação racial de mulheres E homens africanas por homens E(!!!) mulheres brancos. Dentre os milhares de problemas do feminismo, aquele que mais diretamente afeta a nossa comunidade africana é que, por estar embasado na historicidade branca, esta inconsistente ideologia se torna única e exclusivamente um ataque aos homens ao invés de atacar um sistema (branco/ocidental/europeu) que prospera à base da injustiça. Para nós, este é o ultimato à nossa sobrevivência plena. Entender e analisar criticamente os danos de viver numa estrutura branca e antiafricana é essencial e imperativo.Por muito tempo, a academia europeia na tentativa de legitimar as práticas que sustentam a supremacia branca tentou provar que o matriarcalismo era um estágio inferior da evolução das sociedades humanas e que o patriarcalismo seria seu estágio mais evoluído. Desta forma, não só o continente africano, mas similarmente à maioria das sociedades do mundo, ficaria eternamente estagnado no nível da sub-humanidade, já que não antedia aos parâmetros de crueldade com os quais a Europa media/mede seu senso de humanidade (neste caso, o patriarcalismo). Hoje temos importantes registros como os dos irmãos Cheikh Anta Diop e Teóphile Obenga que permitem que tenhamos uma perspectiva própria e consistente com nossa história. Segundo Diop, o nível de desenvolviento de uma sociedade deve ser medido pelo tratamento relegado às mulheres daquela sociedade. A Teoria dos Berços desenvolvida por ele argumenta que dois berços distintos de civilização se desenvolveram em direção quase que antitética uma da outra. O berço do sul, África, e o berço do norte, Europa, apresentam características inteiramente opostas devido, segundo Diop, às condições climáticas em cada continente. O continente europeu apresenta um histórico de escassez devido às duras condições climáticas durante o período glacial. Sendo assim, a figura do homem se torna central na luta pela sobrevivência e o nomadismo é essencialmente o modo de vida estabelecido. O estudo de Diop² elucida o caminho deste berço até os comportamentos xenofóbico, machista e racista. Como ele explica, no contexto europeu a mulher é um "fardo que o homem arrasta atrás dele. Fora sua função de parir, seu papel na sociedade nomádica é zero...Tendo menor valor econômico, é ela que deve deixar seu clã para se juntar àquele de seu marido, contrário ao costume matriarcal que demanda o oposto" (1990:29).Seguindo a linha de antítese na Teoria dos Berços, o continente africano apresenta uma realidade distinta daquela do berço do norte. Desafiando as teorias evolucionistas europeias, Diop atribui o matriarcalismo a um modo de vida agrário num clima de abundância. Assim, é notável, até os dias presentes, a xenofilia como um dos princípios dos povos africana. Em total oposição ao patriarcalismo do continente gelado, Diop afirma que: Um regime matriarcal, longe de ser imposto ao homem por circunstâncias independentes de sua vontade, é aceito e defendido por ele (1990:120). Desta forma, o raciocínio é de que o matriarcalismo é benéfico à mulher E(!!!) ao homem africana, como afirma Nah Dove em seu artigo Definindo a Teoria Mulherismo Africana, publicado por Ama Mazama em The Afrocentric Paradigm (2003):
O conceito de matriarcado realça o aspecto de complementariedade da relação feminino-masculino ou a natureza do feminino e do masculino em todas as formas de vida, que é entendido como não-hierárquico. Ambos mulher e homem trabalham juntos em todas as áreas de organização social. A mulher é reverenciada em seu papel como a mãe que é a portadora da vida, o conduite de regeneração espiritual dos ancestrais, portadora da cultura e o centro da organização social. (...)O papel de maternidade ou cuidados maternais não é confinado às mães ou às mulheres mesmo nas condições contemporâneas. Como Tedla (1995) explica, o conceito de mãe transcende relações de sangue e gênero. Um membro da família ou amigo que tenha sido afável e atencioso pode ser dito como mãe de alguém. É uma honra que se tem em ser concedido tal título (1995:61). Valores desta natureza foram críticos à sobrevivência do povo africano durante o prolongado e contínuo holocausto. Maternidade, desta forma, retrata a natureza das responsabilidades comunais envolvidas na edificação de crianças e no cuidado aos outros (2003:168).³
Dove ressalta que o patriarcalismo - e o machismo - é uma das faces de dominação e opressão da supremacia branca que recai sobre mulher E(!!!) homens E(!!!) crianças africanas por homens E(!!!) mulheres E(!!!) crianças europeias. Segundo a autora de Afrikan Mothers,
Por um lado, sociedades matriarcais, agrárias, reconhecem(ciam) a importância do equilíbrio e da reciprocidade entre os elementos feminino e masculino em todas as formas de natureza, espiritualidade e a natureza comunal de relações sociais. Por outro lado, sociedades patriarcais, nômades, enfatiza(va)m a hierarquia e o poder do princípio masculino sobre o princípio feminino, cujo resultado é o individualismo. Pode ser dito que o desequilíbrio de poder entre a mulher e o homem é a base para desigualdades sociais fundamentais que existem nas sociedades patriarcais. Afinal, o homem e a mulher criam a menor unidade possível para a reprodução da família e da sociedade, segue-se que esta relação de poder desigual, exploradora e antiética será refletida através da sociedade em todo nível.A conquista de África pelos europeus desde a antiguidade até o presente pode ser vista como a conquista do matriarcado pelo patriarcado que era, ao mesmo tempo, a dominação de mulheres, homens e crianças africanas por mulheres, homens e crianças europeias e a potencial subjugação de mulheres africanas por homens e mulheres brancas, assim como [potencial subjugação] do homem africano.
Diante desta realidade humilhante à qual nosso povo vem sendo submetido, o patriarcado (supremacia branca) tem efeitos diferentes, porém igualmente devastadores em homens E mulheres africanas. Frances Cress Welsing (1991), autora de The Isis Papers - The key to the colors, desenha uma correlação entre sexo e violência. Para ela, o estupro é um símbolo cultural histórico branco onde os genitais viram uma arma. Inadequação sexual, ela argumenta, é a base para o desenvolvimento de armamento como um modo de conquista europeia ou controle no desenvolvimento da supremacia branca (1991: 176-8). Welsing conecta o alto nível de estupro dentro da experiência urbana africana com a degradação do homem africano sob a supremacia branca e sua tentativa de reduzir o que ele percebe ser o maior status das mulheres africanas, e sua possível falta de respeito e apreciação por ele, também degradando-a. Assim, o homem africano degradado sob os efeitos da supremacia branca emprega a norma cultural dos europeus a fim de demontrar sua agressão e superioridade. A hipersexualização do ser preto tem sido uma das mais sujas justificativas para o estupro histórico de mulheres, homens e crianças africanas, sendo a agressão sexual imposta e empregada em mulheres, homens e crianças pretas.Mulherismo Africana: uma reapropriação histórica.Certa vez, durante um debate de muheres feministas, ouvi uma das mulheres que estavam na mesa dizer que Simone de Beauvoir, que é a mãe do feminismo, diz que nunca no mundo houve uma sociedade matriarcal. Declaração mais infame do que esta não pode haver. Certamente, como boa racista e atendendo ao decoro da supremacia branca, Simone de Beauvoir parte da centralidade europeia para fazer tal afirmação, já que sociedades africanas não contam no plano histórico da humanidade como algo relevante; africanos não são nada mais do que um museu vivo onde é possível ver como viviam os homens pré-históricos, segundo esta perspectiva. Desta forma, mulheres E homens africana repetem mentiras históricas por que fomos tolhidos de conhecer a nossa própria experiência cultural africana. Na verdade, desde a antiguidade as mulheres africanas têm participação ativa no núcleo da vivência social africana. Ao longo dos milênios nós temos desempenhado papéis espirituais, militares e políticos que têm sido essenciais nos esforços do controle de nossas terras, recursos e energias. Atualmente, podemos ter acesso, com mais facilidade do que no tempo de nossos pais e avós, ao protagonismo das mulheres africanas. Não é novidade o nosso desempenho na defesa de nosso continente e de nosso povo, como temos nos exemplos das Candaces em Cush (atual Etiópia) contra a falha tentativa de conquista de gregos e romanos. Em Angola temos o exemplo de rainha Nzinga (1581-1663), grande líder e estrategista militar. No Congo, Dona Beatrice (1682-1706) protagonizou sua liderança política e espiritual. Em Gana tivemos Yaa Asantewa liderando batalhas contra a invasão britância em 1900. Nos Estados Unidos, Harriet Tubman foi a mais brava dos combatentes pela libertação (James, 1985:23). No Brasil, Luísa Mahin liderou levantes históricos de resistência à colonizção portuguesa.É ancorada nos incontáveis exmplos de mulheres africanas - que transbordam as linhas deste texto - que Clenora Hudson-Weems recentraliza a história das mulheres africanas nos Estados Unidos, assim como em toda a diáspora e no continente, desenvolvendo a teoria do Mulherismo Africana. Observando com lentes africanas a realidade deteriorante que mulheres E homens africana estavam sendo submetidas, Hudson-Weems aponta a urgentíssima necessidade de desenvolver teoria afrocentrada que atendêsse às necessidades de mulheres E homens africana. Hudson-Weems, entendendo o quão pernicioso para nosso povo era (é) estar lidando uns com os outros dentro de formatações europeias, retomou nosso ponto de partida africano e desenvolveu a teoria mulherista africana. Assim como homens E mulheres brancas foram participantes ativos no processo de escravização do nosso povo, mulheres E homens africana sempre lutaram juntos pela libertação dos diversos tentáculos da supremacia branca. Hudson-Weems explica com precisão a importância desta cooperação e colaboração entre homens E mulheres africana. Ao observar a experiência de mulheres pretas nos Estados Unidos, como Harriet Tubman, Ida B. Wells e Sojourner Truth ela ilustra esta historicidade de unicidade e protagonismo da mulher africana. Harriet Tubman (1820-1913) ao conduzir escravizados em escavações a caminho do norte por liberdade, o fez por milhares de ambos mulheres E homens; Ida B. Wells (1862-1931) tomou a frente de inúmeras cruzadas anti-linchamento no início do século XX e o fez por mulheres E homens africana; Sojourner Truth (1797-1883), foi porta-voz abolicionista e sufragista universal em favor dos direitos de homens E mulheres africana. Segundo Hudson-Weems, estas mulheres podem ser consideradas prefeministas (Hudson-Weems, 2003) já que seu foco não era apenas nos problemas das mulheres. Nos elucidando com grande contribuição, a autora afirma que
Em vista das atividades das mulheres africanas desde cedo tais como aquelas mencionadas acima e outras incontáveis heroínas africanas que não são mencionadas, o que a feminista branca fez, na realidade, foi pegar o estilo de vida e as técnicas de mulheres africanas ativistas e usá-los como modelos ou diagramas para a estruturação de sua teoria, e depois nomear, definir e legitimá-la como o único movimento substantivo real para as mulheres. Daí, quando elas definem uma feminista e uma atividade feminista elas estão, de fato, se identificando com mulheres africanas independentes, mulheres que elas tanto emulavam e invejavam. Tais mulheres com quem elas tiveram contato desde o início da escravidão americana, até o Movimento dos Direitos Civis moderno, são mulheres africanas ativistas como Mamie Till Mobley, a mãe de Emmie Louis Till, e Rosa Parks, a mãe do Movimento dos Direitos Civis Moderno. Desta forma, quando as mulheres africanas se juntam e abraçam o feminismo, elas estão, na realidade, duplicando a duplicata. (2003:156)
Segundo Hudson-Weems, depois de quase dois anos de debates públicos sobre a importância de se autodenominar e se autodefinir, ela cunhou o termo Africana Womanism em 1987. Mediante termos de pouca substância, como "Mulherismo Preto", para incluir o total significado desejado para este conceito, "Mulherismo Africana" foi uma natural evolução na terminologia que encontrou neste nome a força desejada, segundo ela, por duas razões básicas: A primeira parte da cunhagem, Africana, identifica a etnicidade da mulher em consideração, e esta referência à sua etnicidade, estabelencendo sua identidade cultural, se relaciona diretamente com sua ancestralidade e sua terra base: Africa. A segunda parte do termo, Mulherismo, invoca o poderoso discurso improvisado de Sojourner Truth "And Ain't I a Woman?" [E Eu, Não sou uma Mulher?], no qual ela combate as forças alienantes dominadoras em sua vida como uma mulher africana lutadora, questionando a ideia normativa de feminilidade (Hudson-Weems, 2003:157). Ainda outras análises relacionadas aos conceitos da língua levaram à escolha do termo mulher(ismo): a humanidade que o nome carrega. Hudson-Weems argumenta que o termo mulherismo se torna mais apropriado à medida que apenas uma "fêmea"(daí o nome feminismo) humana pode ser uma mulher. A teoria mulherista africana foi desenvolvida a fim de endereçar as lutas, as necessidades e desejos das mulheres africanas baseada em sua história única. Também a teoria afrocentrada não é para ser confundida com feminismo de qualquer tipo, seja ele branco, preto ou africano. Não há nenhum tipo de colaboração ou identificação entre a mulher africana (neste caso, mulheres e homens que conscientemente se afirmam africanos e de acordo com os interesses de tal, independente de terem ou não nascido no continente) e feministas brancas que participam na opressão de mulheres E homens africana. Além disto, a mulher africana não vê o homem como seu principal inimigo, como faz a feminista que trava antiga batalha contra seus homens que as subjugam como suas propriedades. O homem africana nunca teve os mesmos poderes institucionalizados para oprimir a mulher africana como faz o homem branco com a mulher branca, e mais tarde com a mulher E com o homem africana. A principal luta que mulheres africanas enfrentam é, na verdade, a cansativa batalha contra a hegemonia europeia que cria caos e destrói a relação entre seres pretos. O papel que as mulheres pretas desempenham dentro do movimento feminista é aquele de marginalidade e de legitimação do discurso branco universalita, ou seja, aquele discurso de que as teorias, ideologias e experiências históricas europeias são cabíveis inclusive aos não-europeus. Mulheres africanas nunca foram consideradas propriedades de suas partes masculinas sendo desta forma necessário dispensar a questão de gênero como uma questão de primazia. De fato, o assimilacionismo por parte de mulheres pretas que abraçam o feminismo é deletério à sobrevivência de nossa comunidade, já que quando o fazem, elas abrem mão do compromisso com sua cultura, seu povo e particularmente com a histórica e atual luta de mulheres E homens africana. A problemática da mulher africana que adota a agenda feminista (preta ou branca) é que, em alguma medida, ela admite ser a questão de gênero o problema mais crítico em busca por empoderamento e autodefinição. No entanto, estando na margem do movimento, já que jamais serão elevadas às feministas renomadas, este é o lugar onde ela não encontrará autodefinição. Ela, com a falsa sensação de estar se definindo e determinando seus próprios caminhos, continua a ser definida por parâmetros alienígenas à sua cultura e experiência de mulher africana. No máximo, ela será concedida pela feminista branca o título de porta-voz universal dos pretos em geral e cooptadora de outras mulheres africanas. O alinhamento e a adoção da pauta feminista está em direta contravenção com as necessidades do povo africana, demonstrando certa falta de perspectiva afrocentrada histórica e contemporânea. Um dos exemplos de pioneirismo das mulheres dentro de nossa cultura é a independência econômica da mulher africana. Sendo esta - independência econômica - uma das pautas do movimento feminista contemporâneo, muitas mulheres pretas respondem positivamente à noção de ser feminista, sem se dar conta de que este era o modo de vida suas ancestrais matriarcais. De fato, nós, mulheres africanas que nos respeitamos e respeitamos a nossos companheiros, temos preocupações legítimas relacionadas ao homem africana. No entanto, é importante que saibamos a origem destes problemas (supremacia branca/racismo) e que busquemos coletivamente, mulheres E homens, a solução para estas questões dentro de um construto teórico endêmico (Hudson-Weems, 2003). Isso significa que já temos um modelo ancestral dentro de nossas experiências históricas pré-escravismo e pré-colonização (e que deu certo por milhares de anos), quando agíamos no centro de nossa cultura. Mulheres E homens sempre foram igualmente tomadores de decisão de seu destino. Hoje, muitas das mulheres pretas que abraçam o feminismo, na ingenuidade sobre a verdadeira historicidade do movimento, o faz, geralmente, por experiências negativas com os homens pretos, rompendo assim um possível foco de resistência para nosso povo. Hudson -Weems destaca que as experiências individuais são válidas na determinação de uma visão de mundo pessoal. Segundo ela, "a resultante generalização que muitas feministas pretas compartilham - de que todos ou quase todos os homens africana são menos valiosos do que as mulheres - é baseada em preguiça intelectual, o que requer racionalização sem esforço." A autora ressalta que este comportamento de generalizar o homem preto apenas como opressor é "um clássico exemplo de exagero grosseiro baseado não em fatos mas em polêmicas ou experiências pessoais limitadas" que castiga todo um grupo. Nossas ancestrais, desde que foram trazidas e espalhadas pela diáspora, sempre lutaram pela emancipação plena do povo africana. A percepção do homem africana como inimigo e os problemas das mulheres africana, incluindo brutalidade física, assédio sexual e subjugação feminina, perpetrados ambos dentro e fora da raça, devem ser definitivamente resolvidos em base coletiva dentro das comunidades africanas (Hudson-Weems , 2003). O povo africana deve eliminar todo tipo de influência racista de suas vidas em primeiro lugar e realizar o movimento sankofa de reapropriação de nossa matriz cultural. A fala universalista e de deslegitimização da nossa luta está presente em cada partícula desta ideologia. John Lennon e Yoko Ono quase me convenceram de sua solidariedade, mas foram mais do que infelizes ao escrever Woman is the nigger of the world [A mulher é o negro do mundo]. Primeiro equívoco é reafirmar a condição de escravizada da população africana, ou seja, as mulheres são tratadas como negros, os verdadeiros escravos - tratamento dado pelo próprio povo dele, vale ressaltar. Igualmente desnecessário é afirmar que todo o mundo tem posturas misóginas para com as mulheres. Esta não é a realidade da mulher NEM(!!!) do homem africana. Usar a palavra nigger é altamente pejorativa para nosso povo, no contexto dos Estados Unidos, logo o é para tod@s nós, já que é uma definição utilizada pelo colonizador a fim de reafirmar nossa condição de seres humanos inferiores. "A mulher é o escravo dos escravos", diz um verso da música. Gostaria de ter tido a oportunidade de perguntá-los se qualquer sinhá se sentia inferior ou oprimida por seu escravizado homem ou mulher. Foi infeliz e desrespeitoso, mas olhares mais "tolerantes" me dirão "radical". Não John Lennon, não Yoko Ono! Eu não sou escrava de ninguém. O reconhecimento e a reapropriação da perspectiva mulherista africana afrocentrada é o que temos de melhor a fim de restaurar integralmente nosso ser físico, mental e espiritual. Entendemos a importância de permanecermos autênticos em nossa existência e de priorizar nossas necessidades mesmo que elas não sejam preocupações relevantes para a cultura dominante. Precisamos retomar nossas posições de matriarcas a fim de reconstruir nossa comunidade. Sabemos que a complementariedade é de extrema importância para que possamos explorar todas as possibilidades de um ser sadio física e mentalmente. Este é um trabalho coletivo que envolve mulheres E homens E crianças no retorno de nossa sanidade. Já é mais do que tempo de dispensar as migalhas ideológicas da europa, sejam elas feminismo, capitalismo, marxismo, e romper com os comportamentos normativos da cultura branca. Nós, mulheres africanas que respeitamos a nós e a nossos irmãos, filhos, companheiros, temos razões suficientes para argumentar que o feminismo nos mata sim!
"O grau de uma civilização é medido pelas relações entre o homem e a mulher." Cheikh Anta Diop
Notas:1. O conceito de deslocamento foi primeiramente cunhado por Molefi Kete Asante como um componente conceitual crítico da Teoria Afrocêntrica nos anos 80 e mais tarde com abordagem mais apropriada nos anos 90. De acordo com a teoria afrocêntrica, cada grupo étnico ocupa um espaço particular, baseado em sua história, cultura e biologia. Este espaço representa o centro ou locação do grupo. No entanto, é possível que um dado grupo desenvolva um senso de locação que não seja congruente com sua história, cultura e biologia. Isso frequentemente acontece quando o grupo se identifica, conscientemente ou não, com outro grupo, o qual ele percebe como dominante, e perde vista de si mesmo, assim causando a ocorrência do deslocamento. A identificação com outro grupo pode acontecer em níveis relacionados: pode envolver a adoção das atitudes do grupo dominante e/ou total ou parcial adoção da cultura do grupo dominante. Ama Mazama
2. A intenção aqui é apenas situar a linha por onde perpassa a pesquisa do autor, e não aprofundar na mesma.
3. Grifo meu.