Escravo negro, sexo e família.
Fragmento de Casa grande & senzala
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na
alma, quando não na alma e no corpo — há muita gente de jenipapo ou mancha
mongólica pelo Brasil — a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do
negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais,
principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo, em que
se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar
menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a
marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu
de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de
comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de
mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira
tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da
cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o
nosso primeiro companheiro de brinquedo.
Já houve quem insinuasse a possibilidade de se
desenvolver das relações íntimas da criança branca com a ama-de-leite negra
muito do pendor sexual que se nota pelas mulheres de cor no filho-família dos
países escravocratas. A importância psíquica do ato de mamar, dos seus efeitos
sobre a criança, é na verdade considerada enorme pelos psicólogos modernos; e
talvez tenha alguma razão Calhoun para supor esses efeitos de grande
significação no caso de brancos criados por amas negras. (…)
É verdade que as condições sociais do desenvolvimento do
menino nos antigos engenhos de açúcar do Brasil, como nas plantações
ante-bellum da Virgínia e das Carolinas — do menino sempre rodeado de negra ou
mulata fácil — talvez expliquem, por si sós, aquela predileção. Conhecem-se
casos no Brasil não só de predileção mas de exclusivismo — homens brancos que
só gozam com negra. De rapaz de importante família rural de Pernambuco conta a
tradição que foi impossível aos pais promoverem-lhe o casamento com primas ou
outras moças brancas de famílias igualmente ilustres. Só queria saber de
mulecas. Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem de conhecida família
escravocrata do Sul: este para excitar-se diante da noiva branca precisou, nas
primeiras noites de casado, de levar para a alcova a camisa úmida de suor,
impregnada de budum, da escrava negra sua amante. Casos de exclusivismo ou
fixação. Mórbidos, portanto; mas através dos quais se sente a sombra do escravo
negro sobre a vida sexual e de família do brasileiro.
Não nos interessa, senão indiretamente, neste ensaio, a
importância do negro na vida estética, muito menos no puro progresso econômico,
do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. No litoral agrário,
muito maior, ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do
português.
Fonte: Freyre, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1983, págs. 283-284.
Nenhum comentário:
Postar um comentário