Uma mulher negra vestida de branco num hospital da Zonal Sul carioca só pode ser acompanhante de alguma madame em tratamento
A cena corriqueira aconteceu no fim de uma manhã ensolarada da temporada olímpica da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, aquela que leva no nome o santo de devoção da inesquecível Simone Biles, quatro ouros, um bronze em solo carioca. [Perdoe, leitor, a digressão, mas está difícil me desapegar dos Jogos 2016.] A paciente negra dá entrada no hospital de classe média alta (eufemismo midiático para rico) para uma cirurgia eletiva. É levada ao quarto. Sentada na cama, vestida de branco, espera o médico, quando entra uma enfermeira.
“Bom dia! Ué... Dona Flávia já foi para o centro cirúrgico?”
— Eu sou a dona Flávia.
— Nossa! Está tão bem que nem parece que será operada. Vamos tirar a pressão?
Como são camuflados os caminhos do racismo à brasileira. De tão enraizado, o preconceito produziu associações rudimentares de classificação de biótipos. Uma mulher negra vestida de branco num hospital da Zonal Sul carioca só pode ser acompanhante de alguma madame em tratamento. Nos arquivos das correlações cerebrais, a pasta que poderia apontá-la como paciente segue lacrada. Há quatro séculos.
Passou da hora de explicar para certa gente nem tão bronzeada que a Lei Áurea completou 128 anos e, apesar do esforço de tantos para evitar, uma parcela estatisticamente nada desprezível dos negros brasileiros subiu degraus na pirâmide social. Estudou em boas escolas, terminou a faculdade, tem bons empregos e salário, compra em lojas sofisticadas e faz cirurgia nos melhores hospitais. É como canta o craque Moacyr Luz: “Estranhou o quê? Preto pode ter o mesmo que você”.
A persistência na imagem estereotipada, que só vê nos negros brasileiros o marginal ou o trabalhador de baixa renda e pouca escolaridade, leva à multiplicação de cenas constrangedoras, como a da colunista no hospital de elite. Mas nem todas podem ser retocadas com frases descabidas. Há um conjunto de atos e omissões que explicam o hiato entre indicadores de saúde de brancos e negros — por conseguinte, a vida daqueles, a morte destes.
“Não faltam pesquisas que relacionam mortalidades materna e neonatal ao tratamento desigual oferecido a mulheres brancas e negras. Se você é negra, jovem e solteira terá mais dificuldade para se internar na primeira maternidade a que recorrer na hora de parir. Mulheres negras recebem menos anestesia, porque se convencionou acreditar que são mais resistentes a dor. Não são. As estatísticas de morte no parto provam isso”, dispara Jurema Werneck, médica e fundadora da ONG Criola, de combate ao racismo e atenção à saúde da mulher negra.
Diretora do Hospital da Mulher Eloneida Studart, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, Ana Teresa Derraik Barbosa cita resultado do inquérito da Fiocruz sobre nascimentos (o maior já feito no país, em 2012) em relação a consultas pré-natal. Entre as gestantes brancas, 80% tiveram seis ou mais atendimentos; pretas, 68%; pardas, 70%. “Uma em cada grupo de 1.100 mulheres brancas morrerá por gravidez, parto ou puerpério. Entre as negras, a proporção é de uma em 360. A desigualdade existe”, afirma.
Na Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População (2008), em que o IBGE consultou brasileiros de seis estados (Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Mato Grosso) sobre a influência da cor da pele no cotidiano, o atendimento à saúde está entre as sete áreas mencionadas. Lideraram o ranking do preconceito o mercado de trabalho (71% de citações) e as instituições jurídico-policiais (68,3%). Mas quatro em cada dez (44,1%) entrevistados afirmaram que a cor influencia na assistência médica. Nos que se autodeclaram negros, a proporção foi a 49%; entre as mulheres ficou em 46,6%, contra 41,4% dos homens.
Em 2011, causou espanto um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o perfil dos transplantados no país. De cada dez receptores de fígado, oito são brancos; pulmão, 77%; rim, 69%; coração, 56%. O acesso a remédios, exames e procedimentos pré-operatórios explica a assimetria no acesso aos transplantes de órgãos. “Quando funciona, quem se apropria do sistema são as pessoas mais bem posicionadas socialmente”, declarou à época o economista Alexandre Marinho, responsável pelo estudo.
A desigualdade racial no sistema médico-hospitalar é real, indisfarçável e precisa ser combatida. É capenga a democracia de um país que discrimina seus filhos no mais básico dos direitos fundamentais. O Artigo 5º da Constituição garante a todos os brasileiros o direito à vida. Saúde faz parte.
FONTE:http://oglobo.globo.com/cultura/na-saude-na-doenca-19989424
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