Esses dias me manifestei nas redes sociais, sobre a última novela que se passa na época da escravidão e está no ar. Disse que achava uma pena ver ali tantos atores e atrizes negros que precisam esperar uma obra como essa para ter oportunidade de trabalhar, e por vezes trabalham somente nelas. Depois do meu comentário, um amigo me chamou para conversar e disse que essas situações só acontecem porque ainda aceitamos esses tipos de papéis e me citou o exemplo de uma atriz específica, que está nesse trabalho interpretando sua quarta personagem seguida como emprega ou escravizada.
Em nossa conversa contei ao meu amigo algo que havia acontecido uma semana antes. Entraram em contato comigo para fazer um trabalho. Não era um trabalho qualquer. A nossa mídia já tem consolidado papéis na dramaturgia e na publicidade que devam ser ocupados por negros. Seja para fortalecer estereótipos, seja porque sabem que somos exceção como protagonistas nesses espaços e nos usam para mostrar que não seguem os padrões preconceituosos. Esse trabalho era um exemplo desse último, ou seja, eu sabia que estava sendo convidada muito mais porque queriam uma mulher negra do que pelo meu talento ou currículo.
O cachê não mudaria minha vida, mas estava longe de ser ruim. Analisei e acabei não aceitando a proposta.
Porém, tenho consciência do privilégio que foi poder dizer não para um trabalho que acabaria por reforçar a imagem que nós, mulheres negras, temos na mídia. Pude, nessa situação, viver na vida real o empoderamento que prego, mas quantas de nós também poderia? Ou, num mercado como o nosso, com tantos altos e baixos, quantos eu ainda poderei recusar ao longo da minha carreira?
Hoje, isso foi possível porque a vida está em ordem, o aluguel está em dia, minha família está saudável e esse dinheiro, mesmo assumindo que não seria tarefa difícil encontrar um destino para ele, não era imprescindível.
Tive escolha. Mas muitos de nós não tem, e se aceitam determinados trabalhos, não é porque não tenham consciência racial, mas porque precisam deles. O que recusei certamente foi ou será aceito por alguma outra profissional, que talvez o fará não por falta de consciência, mas porque é bem complicado manter esse empoderamento com as contas batendo à porta.
Quem nunca ouviu a máxima "a vida é uma questão de escolha"?
Não é de hoje que o significado de "escolha" e "oportunidade" se cruzam ou se divergem quando falamos em igualdade racial.
Não diferenciar um do outro confunde o entendimento do que vivem os negros no Brasil. Essa confusão, aliada ao desconhecimento histórico, faz com que alguns não compreendam, por exemplo, que a escassez de negros em determinados setores da nossa sociedade e a forte presença em outros é uma questão de oportunidade. Ou a falta dela. E atribuem as duas situações a uma escolha que, na maioria das vezes, não se tem. E mais que isso, não se pode ter.
Quem me acompanha sabe o quanto sou uma crítica ferrenha da perpetuação dos estereótipos que a mídia faz de nós, e acho que a mudança tem que passar, necessariamente, por uma postura nossa, mas acredito que colocar todo o peso nos nossos ombros é um exemplo da confusão que se faz entre "escolha" e "oportunidade". E é desonesto também porque sequer temos as ferramentas para que o resultado de tudo isso seja apenas responsabilidade nossa. Esses papéis existem não por culpa do nossos profissionais, mas do racismo. E é ele que deve ser combatido.
A realidade é que hoje o que temos são casos isolados, que ainda não têm o poder de mudar muita coisa. Minha atitude em relação ao convite para um trabalho teve como resultado o mesmo que aconteceria com qualquer ator negro que se recusasse a fazer um papel porque a personagem é de um criminoso ou de uma empregada doméstica: ele vai ficar sem o dinheiro do trabalho e fim.
Por isso, talvez tenhamos é que pensar em meios para que essa decisão cause prejuízo não a nós, mas a quem tem poder de eternizar essa situação. Meios capazes de fazer com que a "escolha" e a "oportunidade" dependam mais somente de nós. E para que nossas escolhas não fechem as portas das oportunidades, seja em que área for, ao sermos no dia-a-dia, os negros e negras empoderados que, de fato, somos.
Porque hoje, ser um negro consciente e conseguir viver como tal é um luxo que, além de ser privilégio de poucos, paga-se um preço bem alto para manter.
FONTE:http://www.setor1rs.com.br/2016/05/o-luxo-de-viver-no-empoderamento.html
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