Tornou-se um mantra no discurso governamental a busca pelo
desenvolvimento. José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, em palestra
proferida no Fórum Social Mundial de 2005, disse que se discute tudo mas
não se discute “o que é democracia”. Poder-se-ia fazer o mesmo agora
com o mantra do desenvolvimento: “O que é desenvolvimento? Apenas
crescimento do PIB?”.
O processo das conferências de políticas de
igualdade racial, que deverá ser concluído com a realização da
Conferência Nacional em novembro, em Brasília, teve como tema central
“Democracia e Desenvolvimento sem racismo”. Como espaço institucional,
onde se encontram representações do movimento social e do governo para a
elaboração, avaliação e monitoramento de políticas públicas, é o tema
possível. Mas, para além dele, é necessário refletir sobre o significado
de desenvolvimento e democracia.
Uma das características mais
marcantes do sistema capitalista, já estudado pelo próprio Marx e
seguidores, é o fato de que a formação social capitalista engloba modos
de produção distintos, ainda que um deles seja o hegemônico. Com a
globalização do capitalismo de forma mais intensa nos últimos anos, essa
articulação torna-se mais evidente. Assim, a produção de celulares de
alta tecnologia engloba desde pesados investimentos em desenvolvimento
tecnológico em determinados centros até o emprego de mão de obra
altamente especializada e intelectualizada como a exploração de trabalho
escravo de crianças para extração do minério tântalo (matéria-prima
necessária para a produção das telas de cristal líquido) em países
africanos. Desde o cientista mais renomado empregado para o
desenvolvimento das tecnologias mais sofisticadas em algum centro
universitário de ponta na Europa até a criança escravizada e submetida a
condições degradantes de vida em algum lugar da África estão inseridos
na mesma máquina produtiva do capitalismo.
É claro que ao primeiro
olhar não se verá nenhuma semelhança entre o intelectual empregado por
uma transnacional e a criança africana submetida ao trabalho escravo.
Enquanto o primeiro enxerga, na sua atividade, a sua razão de viver (e,
por isso, investe na sua formação e pode ter até um prazer no trabalho
que realiza), a criança escravizada vê no que faz uma opção de
sobrevivência (e, por isso, sonha com outra vida). Jamais ambos se verão
como produtores de mais-valia para a empresa transnacional para a qual
trabalham direta ou indiretamente.
Isso porque existe uma divisão
dos recursos auferidos pelo capital para os diferentes tipos de
trabalho. A parte mais considerável dos investimentos é no
desenvolvimento tecnológico, razão pela qual os trabalhadores deste
segmento vivem em um ambiente de maior sofisticação e, portanto, em
condições melhores de trabalho e de vivência. E à medida que o modo de
produção capitalista exige mais e mais investimentos na inovação, aliado
à tendência a concentração e monopolização do capital, há uma redução
dos nichos de alta tecnologia e uma concentração de recursos nestes.
Esse é o motivo pelo qual o capitalismo, na sua atual fase, demonstra
uma brutal concentração de riquezas no mundo todo e internamente nos
países. As periferias são mundiais e internas em cada país.
O
racismo é um dos elementos legitimadores desta diferenciação. Constrói
fronteiras. Aparece como um argumento de fácil assimilação, para que o
trabalhador intelectual do setor de desenvolvimento tecnológico da
empresa de celulares sofisticados se veja como distinto da criança
escravizada que produz a matéria-prima. Aquela mesma cujo perfil o fará
se assustar e se proteger caso cruze com uma na rua. E esse mesmo
trabalhador intelectual admirará o empresário que explora ambos.
Voltando
ao tema da conferência “desenvolvimento e democracia sem racismo”, vem a
pergunta – Qual desenvolvimento? A professora Eda Tassara, colega minha
do Instituto de Psicologia, disse em uma banca da qual participei que
“a lógica da máquina que vivemos coloca para nós duas possibilidades –
ou consideramos esta lógica incompleta e, portanto, é preciso
completá-la; ou a consideramos perversa e atuamos para sair dela”.
Qual
desenvolvimento? É possível pensarmos em uma sociabilidade livre de
racismos dentro da lógica desta máquina, apenas “corrigindo os seus
erros”, ou a sua lógica é justamente sustentada pelo racismo estrutural,
que se manifesta em diversos campos? Evidente que não se espera que um
debate como esse flua em um espaço institucional, limitado por sua
própria natureza, mas que aconteça na ambiência dos movimentos sociais
de combate ao racismo, para que se tenha uma perspectiva autônoma nas
relações com o Estado.
FONTE:http://www.geledes.org.br/em-debate/21973-racismo-e-as-logicas-do-desenvolvimento-capitalista
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