Raquel Raichelis
Professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP
Analisar a profissão e os
desafios do projeto profissional na esfera estatal supõe apreendê-los na dinâmica
sócio-histórica, que configura o campo em que se desenvolve o exercício
profissional e problematizar as respostas profissionais – teóricas, técnicas e
ético-políticas – que traduzem a sistematização de conhecimentos e saberes
acumulados frente às demandas sociais dirigidas ao Serviço Social.
As premissas que orientam a
análise do Serviço Social inserido na dinâmica da vida social:
A primeira premissa é que as profissões são construções históricas
que somente ganham significado e inteligibilidade se analisadas no interior do
movimento das sociedades nas quais se inserem.
Ás condições propícias à
profissionalização do Serviço Social (e de tantas outras profissões) foram
criadas a partir da crescente intervenção do Estado capitalista nos processos
de regulação e reprodução social, por meio das políticas sociais públicas.
É esse processo, indutor da
presença de um crescente conjunto de instituições sociais, que cria o espaço
ocupacional para o Serviço Social emergir como profissão, no contexto em que a
questão social se põe como alvo da intervenção do Estado, por meio das
políticas sociais públicas.
A segunda premissa é a particularidade do Serviço Social como
profissão, de intervir nos processos e mecanismos ligados ao enfrentamento da
questão social, em suas mais agudas manifestações, que se renovam e se
atualizam diante das diferentes conjunturas sociopolíticas. Trata-se de novas e
velhas questões derivadas da desigualdade social, características do
capitalismo monopolista, em suas múltiplas faces e dimensões, com as quais os
assistentes sociais convivem no cotidiano profissional.
A crescente centralização das
políticas sociais pelo Estado capitalista, no processo de modernização
conservadora no Brasil, gera o aumento da demanda pela execução de programas e
serviços sociais, impulsionando a conexão entre política social e Serviço
Social no Brasil e a consequente expansão e diversificação do mercado
profissional.
Essas ponderações nos levam à terceira premissa, relativa ao
fundamento da profissionalização do Serviço Social, a partir da estruturação de
um espaço socioocupacional determinado pela dinâmica contraditória que emerge
no sistema estatal em suas relações com as classes e suas distintas frações, e
que transforma as sequelas da questão social em objeto de intervenção
continuada e sistemática por parte do Estado.
A quarta premissa é que a centralidade do Estado, na análise das
política sociais, não significa reduzi-las ao campos de intervenção estatal,
uma vez que para a sua realização participam organismos governamentais e
privados que estabelecem relações complementares e conflituosas, colocando em
confronto e em disputa necessidades, interesses e formas de representação de
classes e de seus segmentos sociais.
A quinta premissa é que a reflexão sobre o trabalho do assistente
social na esfera estatal remete necessariamente ao tema das relações, ao mesmo
tempo recíprocas e antagônicas, entre o Estado e a sociedade civil, uma vez que
o Estado não é algo separado da sociedade, sendo, ao contrário, produto desta
relação, que se transforma e se particulariza em diferentes formações sociais e
contextos históricos.
Para finalizar, a última premissa destaca que embora seja
frequente observar o tratamento das categorias Estado e governo como sinônimos
– considerando que é o governo que fala em nome do Estado – esse uso
indiscriminado pode gerar confusões com graves implicações políticas (uma delas
é supor que assumir o poder governamental é equivalente a conquistar o poder do
Estado).
A esfera da produção é palco de intensas transformações e
re-estruturações. Afirmam-se as condições estruturais do capitalismo global
financeirizado e o fabuloso desenvolvimento tecnológico e informacional, que
promovem intensas mudanças nos processos e relações de trabalho, gerando terceirização,
subcontratação, trabalho temporário, parcial e diferentes formas de
precarização e informalização das relações de trabalho, para citar apenas
algumas das profundas mudanças em curso na esfera da produção e no mundo do
trabalho.
No âmbito estatal, o retraimento das funções do Estado e a redução dos
gastos sociais vêm contribuindo para o processo de desresponsabilização em
relação às políticas sociais universais e o consequente retrocesso na
consolidação e expansão dos direitos sociais.
As consequencias dessa forma de
condução das políticas para o trabalho social são profundas, pois a
terceirização desconfigura o significado e a amplitude do trabalho técnico
realizado pelos assistentes sociais e demais trabalhadores sociais, desloca as
relações entre a população, suas formas de representação e a gestão
governamental, pela intermediação de empresas e organizações contratadas; além
disso, as ações desenvolvidas passam a ser subordinadas a prazos contratuais e
aos recursos financeiros destinados para esse fim, implicando descontinuidades,
rompimento de vínculos com usuários, descrédito da população para com as ações
públicas.
No âmbito da sociedade civil, as duas últimas décadas vêm sendo palco
de múltiplas tendências que se expressam com grande visibilidade, ganhando a
opinião pública: o crescimento das ONGs e as propostas de parcerias
implementadas pelo Estado em suas diferentes esferas, principalmente nos planos
municipal e local.
Nesse contexto, dissemina-se,
simultaneamente, uma versão comunitarista de conceber a sociedade civil, que
passa a ser incorporada como sinônimo de “terceiro setor”. A sociedade civil,
nesses termos, é definida como um conjunto indiferenciado de organizações,
identificadas sob a denominação genérica de entidades sem fins lucrativos, passando
por cima das clivagens de classe, da diversidade dos projetos políticos e das
instâncias de representação política como sindicatos e partidos. Reitera-se a
noção da comunidade abstrata, valorizando-se relações de solidariedade social e
ajuda mútua, despolitizando-se os conflitos sociais em nome de um suposto bem-comum.
Diante do esvaziamento do espaço
público contemporâneo e do crescimento de demandas sociais não atendidas, o
risco é o de fragmentação da sociedade civil em múltiplas ações e movimentos
que não conseguem articular-se em torno de projetos coletivos a serem
confrontados e explicitados.
O Serviço Social tem uma rica
trajetória de trabalho direto com a população e proximidade com o seu modo de
vida no cotidiano. Nesses últimos anos, porém, com refluxo dos movimentos
populares e o enfraquecimento das instâncias coletivas de representação
política, o trabalho de mobilização e organização popular cedeu lugar a formas
institucionalizadas de participação.
Impactos e avanços na esfera
pública somente serão possíveis pela articulação dos variados sujeitos e
organizações governamentais e não-governamentais, como os conselhos de
direitos, tutelares e de gestão, os fóruns e órgãos de defesa dos direitos, o
poder judiciário, o Ministério Público, as defensorias e ouvidorias públicas,
em uma efetiva cruzada pela ampliação de direitos e da cultura pública
democrática em nossa sociedade.
É necessário ressaltar que,
apesar de todos os obstáculos encontrados no exercício profissional, a categoria
dos assistentes sociais vem construindo uma história de lutas e de resistência,
apostando no futuro, mas entendendo que ele se constrói agora, no tempo
presente.
Para isso, é fundamental
continuar investindo na consolidação do projeto ético-político do Serviço
Social, no cotidiano de trabalho profissional, que caminhe na direção do
desenvolvimento da sociabilidade pública capaz de refundar a política como
espaço de criação e generalização de direitos.
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