Publicado em Terça, 18 Junho 2013
Por Mariana Santos de Assis
Há muito tempo venho pensando sobre as relações afetivas entre homens e mulheres negros. Não é um tema simples, o mais comum é que a gente caia na armadilha da busca constante de culpados. Ora a culpa é do homem negro que não compreende as dores da mulher negra, o fardo de estar totalmente fora do padrão estético, ao mesmo tempo que a estética rege praticamente todas as nossas relações sociais, o conflito entre ser bem sucedida, independente, emanciapda e ao mesmo tempo sonhar com o grande amor, a família padrão, as futilidades (im)postas ao gênero. Ora a culpa é da mulher que não compreende o homem negro, suas necessidades masculinas em uma sociedade em que ele não passa de mero objeto de reprodução, sua busca constante pela emancipação que as negras conquistaram bem mais rápido, a necessidade de impor sua posição de macho dominante provedor.
Não discordo que todos tenhamos nossa parcela de culpa no desastre que são as relações entre homens e mulheres negras. Porém não vejo muita utilidade ficarmos nos apunhalando e acusando, o fato é que estamos do mesmo lado da trincheira, queiramos ou não, portanto, precisamos mirar no inimigo certo. Para isso é fundamental entender que os motivos são mais complexos que mágoas, rancores, misoginias e autoritarismos, devemos pensar em como essas relações se constroem historicamente. Primeiramente quero falar sobre o homem negro, qual a condição do homem negro em uma sociedade escravocrata? Espero que ninguém duvide de que ainda estamos sob a égide da escravidão…
Todos conhecem as condições de existência dos negros escravizados no ocidente, porém quando pensamos em termos de construção da masculinidade a coisa toma proporções ainda mais assustadoras e cruéis. O homem africano vivia, em sua maioria, em sociedades patriarcais eram líderes e chefes de família. Nas colônias, igualmente patriarcais, esses mesmos homens se tornaram escravos e eram inferiores a qualquer mulher branca. Não apenas sua humanidade foi tirada, mas também sua virilidade, masculinidade, sua condição de homem e todas as implicações que essa classificação traz, ainda mais em uma sociedade patriarcal, falocêntrica.
Por mais que as definições de masculinidade sejam altamente questionáveis hoje, sobretudo para as mulheres, não podemos negar sua importância nos modos de inserção dos homens na sociedade, no tornar-se homem adulto, responsável e provedor. Os homens negros foram completamente privados disso, ao contrário do provedor, líder e chefe de família ele passou a ser, na escravidão mais barato do que as mulheres negras e servo das mulheres brancas e na abolição sustentado por suas companheiras, pois não havia espaço para ele nesse novo mundo em que foi jogado. Tais são as dores do homem negro e é com esse tipo de sofrimento que suas companheiras precisam saber lidar.
Porém a luta do homem negro por retomar sua masculinidade, quando entendida nesses termos, desconsidera a luta das mulheres por sua própria liberdade, por seu espaço para além de meros úteros férteis e lavadeiras competentes. Buscar essa masculinidade é, dentre outras coisas, desconsiderar a principal vantagem que nós negrxs temos com relação aos brancos, ao menos no que se refere ao debate de gênero, homens e mulheres negras já foram iguais! Na escravidão nós vivíamos nas mesmas condições de subalternidade, animalidade e selvageria, éramos considerados a mesmo criatura sem alma, éramos iguais.
Prova disso, é justamente a relação com as mulheres brancas nesse contexto, elas nunca foram iguais aos homens brancos, mas os homens negros eram inferiores a elas, assim como as mulheres negras. O fato é que ao tentar reconquistar o espaço do masculino em uma sociedade machista e repressora das mulheres, os homens negros estão abrindo mão dessa vantagem histórica, de nossas lutas lado a lado pela liberdade de nossos descendentes, pela nossa dignidade, pela família negra. Em última instância o homem negro que luta por sua posição de chefe, líder, macho dominante está lutando para ser um homem branco, aquele mesmo homem branco contra o qual ele lutou ao lado de sua companheira negra.
Essa talvez seja uma forma de superarmos machismo e racismo, ao menos entre nós. Para compreendermos realmente a dor de nossos irmãos e irmãs é preciso que nossas dores dialoguem entre si, é preciso avançar para além dos muros impostos pela sociedade que nos escraviza e exclui diariamente de suas relações e conquistas, é preciso fazer o caminho mais difícil, seguir abrindo trilhas na mata fechada do preconceito para que nossos descendentes possam vislumbrar com mais nitidez a igualdade que tanto sonhamos.
Mariana Santos de Assis: formada em letras e mestranda em linguística aplicada na Unicamp, militante no Núcleo de Consciência Negra e na Frente Pró-Cotas da Unicamp.
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