BRANCA PARA CASAR
LIMA, Marcos Hidemi de
(UEL-PG)
Conta-nos Gilberto
Freyre em Casa-grande & senzala que havia um ditado
corrente no Brasil patriarcal a respeito das mulheres: “Branca para casar,
mulata para foder e negra para trabalhar” [1],
que revela o pensamento masculino de então no qual a mulher é vista preconceituosamente
como um objeto útil. No caso das brancas, úteis para interpretar o papel de
mãe, mulher e dona de casa, relevantes para dar à família um status oficial e
continuidade à linhagem familiar, devendo estar dentro dos modelos patriarcais;
quanto às mulatas, principalmente aquelas mais bem feitas, mais bonitas, mais
dóceis, o papel de coadjuvantes no cotidiano da vida patriarcal, dentro das
casas-grandes, atuando como mucamas, submetidas muitas vezes a repasto sexual
do senhor ou como iniciadoras das práticas sexuais dos filhos deste e também,
não raras vezes, como vítimas das sinhás, que transplantavam o ódio de sua
submissão à ordem masculina sobre as mucamas. Às mulheres negras, sem os
predicados que as tornassem passíveis de agradarem sexualmente o senhor
patriarcal, cabiam exercer o papel de animais de carga, o de suportar tarefas
extenuantes, o de se esfalfar nas cozinhas sob os gritos das sinhás-donas, o de
suar nas tarefas diárias das fazendas e dos engenhos.
Os tempos são outros,
em S. Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, entretanto a
estrutura patriarcal parece continuar intocável e imóvel. À medida que o
romance é lido, é possível reconhecer diversas semelhanças com as velhas
práticas quanto ao tratamento das mulheres: Margarida, a negra mãe de criação
do fazendeiro, levada para o convívio com o filho adotivo, mesmo recebendo os
melhores afetos de Paulo Honório, pensa ainda num passado no qual se esfalfava
ao redor de um tacho de fazer doce, como se a única finalidade dela fosse trabalhar; Germana, a quem o narrador chama
de “cabritinha sarará”, é apresentada apenas como uma mulher que serve para
aliviar os seus desejos sexuais, é a “mulher comível”, sempre identificada com
a mulher de cor, de que nos fala Affonso Romano de Sant”Anna em O
canibalismo amoroso; por fim, há Madalena, a “mulher esposável” em oposição
à “mulher comível”, a moça loira, de olhos azuis, com a qual Paulo Honório se
casa, a esperar dela uma mulher resignada dentro do lar, bem como capaz de
gerar o almejado herdeiro que sucederia o fazendeiro no comando da terras de S.
Bernardo.
É com esse preconceito
racial e social introjetado em seu espírito que Paulo Honório, já tendo
consolidado uma posição socioeconômica invejável - tornara-se fazendeiro
próspero -, resolve reforçar sua posição de poder unindo-se a uma
mulher (obviamente branca) que lhe desse um herdeiro para manter a propriedade
tão duramente obtida.
Acostumado ao mando, a
ter a seus pés empregados e amigos, ele julga que mulher é um ser “difícil de
governar”, um ser semelhante a um animal, cuja única finalidade é procriar. A
respeito disso, Nancy Leys Stepan, no artigo Raça e gênero: o
papel da analogia na ciência, elucida essa maneira de conceber a mulher
semelhante a um animal como oriunda de idéias dos cientistas do século 19,
principalmente os que estudaram a relação entre o tamanho da cabeça e o tamanho
do cérebro, sustentando que “negros, mulheres, classes baixas e criminosos
tinham em comum cérebros mais leves e crânios com capacidades menores” [2].
Ao associar menor
inteligência ao gênero feminino, bem como à raça negra (os pobres e os loucos
também estavam dentro deste grupo), esses cientistas muitas vezes tiveram que
fazer manobras quase cômicas para ajustar a teoria à realidade, reflexo de uma
forte misoginia, igual à professada pela Igreja Católica que, durante a
Inquisição, matou milhares de mulheres.
Não parece ser movido
pela afeição que Paulo Honório põe-se a procurar uma mulher apropriada para se
casar. Mais parece um homem a selecionar, apoiado em idéias de eugenia, não
exatamente uma mulher, mas sim uma fêmea que lhe desse evidentemente filhos
saudáveis iguais a ele. A escolha recairá sobre Madalena, embora ela não
possuísse os atributos que inicialmente ele idealizara, ou seja, “uma criatura
alta, sadia, com trinta anos, cabelos pretos” [3],
pelo contrário, deparar-se-ia com uma mulher de 27 anos, loira, de olhos azuis,
saída da escola normal, muito sensível e inteligente, nas palavras dele
“precisamente o contrário da mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me,
com os diabos. Miudinha, fraquinha.” [4]
Se a mulher idealizada
por ele não se tornara realidade, consola-se por ser uma por quem se
apaixonara, que pela compleição física parecia ser fácil de ser dominada, de
servir ao papel esperado da mulher branca no mundo patriarcal, isto é, apta a
viver à sombra do inquestionável coronel, como se fosse mais um pedaço de terra
conquistado, como vinha fazendo com as propriedades vizinhas, graças às
chicanas de seu advogado João Nogueira.
Depois de um rápido
contato com Madalena, com a qual mal troca algumas palavras, na casa do juiz
dr. Magalhães, Paulo Honório apaixona-se por ela e faz tudo para novamente
reencontrá-la, a fim de lhe propor casamento, visto que enxerga o matrimônio
como outro negócio qualquer. Relutante, indecisa, Madalena resolve casar-se por
não vislumbrar perspectivas otimistas na sua carreira de magistério, além de
ter a seu encargo a tia que a criara até então à base de todos os sofrimentos
possíveis, a qual certamente teria que ser amparada na velhice pela sobrinha. O
casamento de Madalena e Paulo Honório dá-se, enfim, como a efetivação de um
negócio para ambas as partes. Quando o fazendeiro a pede em casamento, ela
confessa que não o ama, contudo entrevê nessa união um negócio, uma forma de
solucionar sua situação de professora sem perspectivas de melhoras a curto
prazo.
A Paulo Honório pouco
importa que no casamento entre ambos não haja amor, aliás a união entre as
pessoas, na sua concepção, tem como única finalidade a procriação,
idêntica à preocupação dos religiosos católicos, desde a Idade Média, que se
incorporou definitivamente à instituição do matrimônio. Nessa época geralmente
as pessoas não se casavam por amor, era uma prática que unia famílias
poderosas, tanto que, como ressalta José Rivair Macedo, em A
mulher na Idade Média, “as expressões de amor ou afeto nem sempre
estiveram presentes nas uniões” [5],
principalmente porque a mulher sequer gozava de um estatuto jurídico de igualdade
perante o homem. Submetida às ordens do pai enquanto solteira, após o casamento
passava à submissão do marido. A única importância da mulher era a capacidade
de gerar filhos, exatamente como acredita Paulo Honório, em pleno século 20,
cioso de gerar um descendente para administrar a fazenda que possuía.
Num ambiente repressor como
o da esfera patriarcal, o relacionamento sexual entre o homem e mulher brancos
dava-se sem amor, apenas com o objetivo de procriação, porque “nesta esfera
puritana, da ‘boa sociedade’ – ou seja, a classe senhorial -, a relação carnal
está recalcada, não-erotizada. O amor físico, liberador do prazer, está
reservado para as mulheres, em espaços outros que não o núcleo familiar” [6],
conforme comentários de Roberto Reis, em A permanência do círculo. Mesmo
apaixonado por Madalena, o sexo para Paulo Honório parece limitar-se
tão-somente à finalidade de gerar um filho, não há na obra comentários do
narrador que revelem interesse de fundo erótico pela esposa, comentários deste
teor são feitos para Rosa do Marciano ou Germana.
A idéia de eugenia
novamente é ventilada em outro comentário de Paulo Honório, desta vez a respeito
de pais e filhos. Numa conversa com d. Glória, tia de Madalena, em que esta
sustenta que é preciso haver reciprocidade entre sentimentos de duas pessoas
que queiram casar-se, diz ele que isso não passa de pieguice, e
acrescenta que “se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos
não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe” [7] e
conclui com uma espécie de chave de ouro que conhecia o manual de zootecnia
dele, associando técnicas de melhora da raça animal como úteis à criação de
filhos. Engana-se, porém, Paulo Honório, pois o filho dele e de Madalena era um
menino louro como a mãe, porém “feio como os pecados. As perninhas e os
bracinhos finos que faziam dó” [8],
contrariando totalmente as idéias que ele sustentara anteriormente.
Embora Madalena não seja
exatamente o tipo de mulher que Paulo Honório procurava, o fazendeiro crê que
será fácil conduzi-la. Entretanto, mal estão casados, ela já dá mostras de sua
independência, afirmando ao marido que pretendia exercer alguma atividade na
fazenda. Ela revela-se totalmente o oposto de que ele esperava. Representa um
outro momento mais avançado na forma de conceber o ideal das relações humanas.
Não tem o apego à riqueza como Paulo Honório; pelo contrário, deseja oferecer
aos trabalhadores da fazenda melhores condições de trabalho, o que a coloca
imediatamente em confronto com o pensamento do marido, que explorava os
funcionários como uma verdadeira ave de rapina capitalista.
Ser
mulher tornaria Madalena, de acordo com os conceitos patriarcais de Paulo
Honório, destituída de senso crítico para poder discernir o que deveria ser
feito na fazenda e o que não deveria. Contudo, engana-se ele ao acreditar que
Madalena seria um mero bibelô, mais uma professorinha entre “professorinhas de
primeiras letras [que] a escola normal fabricava às dúzias” [9],
que rapidamente tornar-se-ia dócil às suas ordens e imposições.
Madalena não se deixa
subjugar por Paulo Honório. Aliás, ela o assusta. Normalista, ela é também uma
intelectual, que escreve artigos para os jornais e tem opiniões próprias,
contra as quais Paulo Honório irá se opor, já que é impossível para uma
mentalidade patriarcal como a do narrador conceber uma mulher com independência
de pensamento.
Paulo Honório acha
insensata a iniciativa de ela escrever artigos no jornal Cruzeiro, preconceito
claro contra mulher instruída, já que a expectativa era que ela estivesse
preparada para cuidar do lar, do marido e dos filhos, necessitando, portanto,
pouca educação, apenas suficiente para recepcionar os amigos do marido, visto
que “o liberalismo clássico e, em menor medida, o positivismo, defendiam a
permanência da mulher no lar, cumprindo sua missão de educadora da família. A partir
da concepção das diferenças biológicas e mentais, o positivismo atribui funções
diferentes aos dois sexos e, como tal, diferentes tipos de educação” [10], de
acordo comElódia Xavier, em Declínio do Patriarcado, ao
analisar alguns romances de Júlia Lopes de Almeida, comentários que se ajustam
ao pensamento de Paulo Honório.
A incompatibilidade de
Madalena com as atividades domésticas veicula a postura de que ela não se
harmoniza com os padrões esperados da mulher na sociedade, em conformidade com
o pensamento do marido, isto é, mãe zelosa, excelente dona de casa, boa
anfitriã dos convivas do esposo, conceitos que passaram a vigorar plenamente a partir
do século 20, principalmente depois da ampla difusão dada pelo positivismo,
reforçada por teses médicas e higienistas de que o principal papel feminino era
o da procriação.
Como as boas condições
econômicas haviam tornado Paulo Honório um homem de sucesso, necessitava ele,
então, de uma mulher bela e de razoável inteligência para poder figurar ao seu
lado no meio da sociedade, entre seus amigos jornalistas, advogados, juízes.
Isso, é claro, era algo que ele não demonstrava claramente, existia de forma
sub-reptícia, expressa pela necessidade de constituir família e ter um
herdeiro. Seduzem-no o comportamento dela, a beleza, a inteligência, o que o
faz entrever futuramente o verniz de fineza que a mulher sobreporia em sua
brutalidade, boçalidade e estupidez.
As virtudes de Madalena
ferem frontalmente o mundo patriarcal em que vive Paulo Honório, porque ela é
uma mulher que não dá a atenção devida ao filho, como presume o fazendeiro,
além disso, em vez de dedicar-se às lides domésticas, tendência “natural” das
mulheres, a isso ela se opõe prontamente, tão logo Paulo Honório lhe sugere
ajudar a empregada Maria das Dores na cozinha. Madalena abomina afazeres
domésticos e a reclusão ao espaço privado da casa, passa então a exercer
atividades que àquela altura ainda eram consideradas de competência masculina,
indo para o escritório onde trabalha seu Ribeiro com a contabilidade da
fazenda.
Madalena havia obtido a
duras penas uma formação intelectual bem diversa da de Paulo Honório, o qual se
contentava com alguns rudimentos de aritmética, leitura, escrita, zootecnia e
outros conhecimentos, suficientes para administrar a fazenda. Madalena pode ser
considerada privilegiada quanto à formação intelectual, já que o curso normal
era, no momento em que as ações transcorrem no romance, o ápice da carreira de
educação concedida ao sexo feminino, “os cursos normais representavam, na
maioria dos estados brasileiros, a meta mais alta dos estudos a que uma jovem
poderia pretender” [11],
segundo Guacira Lopes Louro, no artigoMulheres na sala de aula.
Aliás, foi por meio do estudo para ser professora primária que muitas mulheres
brasileiras obtiveram a liberdade de sair do confinamento da casa para
conquistar o espaço da rua, por excelência até então restrito aos homens.
Madalena, a motivação de
Paulo Honório para compor o romance, é a única mulher que ele não conseguiu
dobrar, não conseguiu moldar na forma esperada da mulher branca do mundo
patriarcal: submissa, pouco dotada intelectualmente, apta para gerar filhos e
silenciosa dona de casa. Opondo-se a essas expectativas, ela provoca em Paulo
Honório um ciúme doentio, um ciúme de proprietário, um ciúme de macho ultrajado
que tudo quer dominar.
As conseqüências
trágicas deste embate entre Madalena e Paulo Honório são conhecidas por todos:
culmina no suicídio de Madalena – simbolicamente a vitória da mentalidade
patriarcal, em que a voz da mulher é bruscamente silenciada e, ao mesmo tempo,
é a queda desse mundo, porque a partir da morte dela tudo que Paulo Honório
construiu simplesmente começa a deteriorar.
BIBLIOGRAFIA
FREYRE, Gilberto. Casa-grande
& senzala. São Paulo: Círculo do livro, s/d.
LOURO, Guacira Lopes.
Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary
(Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, 2. ed.
MACEDO,
José Rivair. A mulher na idade média. São Paulo: Contexto,
1990.
RAMOS, Graciliano. S.
Bernardo. Rio, São Paulo: Record, 1975, 24. ed.
REIS, Roberto. A
permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói: EDUFF,
1987.
SANT’ANNA, Affonso
Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa
cultura através da poesia. São Paulo: Círculo do livro, s/d.
STEPAN, Nancy Leys.
Raça e gênero: o papel da analogia na ciência. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de
(Org.). Tendências e impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
XAVIER, Elódia. Declínio
do patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record/
Rosa dos Ventos, 1998.
O pensamento preconceituoso do homem negro em relação à mulher negra é triste e, conforme explicado no texto, remonta ao período escravista. Mas o que dizer do contrário? ... Desde menino eu sempre observei que também existe o preconceito da mulher negra brasileira para com os homens negros. Elas não tem nenhum preconceito com brancos, mas tem esse outro preconceito que é mais triste ainda, pois é voltado contra sua própria gente. Um dos principais motivos é a ilusão com o modelo branco de beleza, considerado padrão, pois isso produz nelas algo que poderia ser chamado de “mentalidade eugenista”, que é o anseio de que a miscigenação atenue as características afro-negras dos futuros filhos. E como conseqüência disso, uma grande parcela dos negros raramente têm oportunidade com elas.
ResponderExcluirOutro ponto a ser considerado é o seguinte: MULATAS SÃO NEGRAS, afinal elas também têm o sangue africano. Inclusive, mulatos/mulatas são denominados de pardos, e oficialmente a população negra do Brasil é a soma dos autodeclarados de cor “preta” e de cor “parda”. O problema é que o Brasil é um país de raças inventadas, e que só existem no imaginário popular: mulato, cafuzo, mameluco, etc... Ademais, todas as negras brasileiras são miscigenadas, porque os desgraçados dos senhores de engenho exploraram sexualmente as nossas ancestrais durante mais de três séculos de escravidão; portanto, é equivocada qualquer tendência de classificar separadamente as mulheres negras baseando-se em diferenças de tom de pele ou de traços faciais.
A questão é, não se trata de tom de pele e traços faciais e sim de auto-declaração e afirmação. Os mulatos e mulatas, assumem essa condição de subserviência em relação a cultura de modo de vida eurocêntrico. Eles mesmo se separam e se acham superiores aos negros.
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